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sexta-feira, 14 de março de 2014

UM CACHORRO

para Getúlio


Pronto. A mala estava arrumada. Não faltava mais nada para sua viagem de férias. Tinha ligado para a cooperativa de táxi que o atendia agendando um carro para 9 horas. Tinha uma folga considerável para o seu voo, cujo check in também já tinha feito pela internet. No cartão de embarque estava escrito que ele deveria estar no portão indicado às 13:10 horas. Estava ansioso, pois há muito não fazia uma viagem. E ainda iria para Paris, sua cidade preferida. Ele olhou o relógio. 7 horas. Seus pés sentiram uma lambida. Era Getúlio, seu cachorro, que pressentia que ele o deixaria por um período longo. Pegou o cachorro no colo, acariciou sua cabeça, coçou sua barriga, o que ele adorava. Ficou assim por alguns minutos. Em seguida, checou se tinha colocado tudo de Getúlio em uma sacola grande. Ração especial, pois o cachorro era alérgico, vasilhas para colocar água e comida, cama, manta, tapete higiênico, três brinquedos, osso para mastigar, um rolo de sacos plásticos para recolher o coco durante o seu passeio diário, coleira e os remédios para controlar a alergia. Tudo estava lá na sacola. Getúlio o olhava com olhos marejados, como quem sabia de algo. Uma colega de trabalho se dispusera a ficar com o cachorro durante a sua ausência. O horário combinado para buscar Getúlio era às 7 horas. Ela estava atrasada. Os ponteiros do relógio corriam e ela não aparecia. Resolveu ligar. Tentou inúmeras vezes. O celular tocava até cair na caixa de mensagens. Em todas, deixou recado. Ele não tinha o endereço da colega. Ligou para outros colegas de trabalho, mesmo sendo sábado, mesmo sendo tão cedo. Sem sucesso. Aqueles que atenderam não sabiam onde ela morava. O interfone tocou. Ele correu para atender, tropeçando em Getúlio, que emitiu um som esganiçado, enfiou o rabo entre as pernas, baixou a cabeça, disparando para debaixo do móvel da sala, onde sempre se refugiava quando fazia alguma coisa errada. Não era a colega de trabalho. Era o porteiro informando que o seu táxi chegara. Estava quinze minutos adiantado. Uma grande interrogação apareceu em sua mente e serpenteou para fora de sua cabeça, ocupando todo o espaço da cozinha. “O que fazer com Getúlio?” Sem pensar muito, pegou sua bagagem, o cachorro e as coisas dele, deu uma olhada geral no apartamento. Uma furtiva lágrima escorreu do lado direito de seu olho direito. Fechou a porta e esperou o elevador de serviço, por onde teve que descer por causa das regras do condomínio, já que estava com o cachorro. No saguão do prédio, pediu ajudou ao porteiro a quem abraçou apertadamente depois de tudo colocado no carro. O taxista sabia do seu destino. Ele entrou no carro segurando Getúlio, que estava bem alegre de estar junto ao seu dono. Lembrou-se da casa em que morara quando adolescente, dando o endereço ao motorista. Disse que precisava deixar o cachorro antes de ir para o aeroporto. Ele sabia que a casa estava vazia. No percurso, travou uma conversa com o taxista sobre criar animais domésticos. O motorista disse que morava em uma casa, era casado e tinha duas filhas pequenas. Nunca teve animal, pois achava que dava muita despesa e que não queria se apegar a um bichinho tão indefeso como parecia ser Getúlio. Ele rebatia tudo que o taxista dizia, sempre enaltecendo os pontos positivos de se ter um animal de estimação. Getúlio, que tinha completado 3 anos no dia 14 de março, lhe proporcionava alegria, lhe fazia companhia, entendia seu estado de humor, ficando quieto quando chegava com cara amarrada em casa e balançando o rabinho quando chegava feliz. Era adorável. Getúlio correspondia àquelas palavras com lambidas carinhosas em sua mão. O taxista via tudo o que acontecia de seu espelho retrovisor. Chegaram ao endereço. A casa tinha aspecto de mal assombrada. Precisava de uma boa reforma. Ele saiu do carro com o cachorro e procurou a campainha. Não a encontrou. Na verdade, não havia. Há muito fora roubada e ninguém a repôs. Bateu palmas. Sabia que não seria atendido, mas esperou. Começou a andar de um lado para o outro na calçada, aparentando nervosismo. Parecia um teatro, mas ele suava de verdade. Sua camisa logo ficou molhada debaixo dos braços. O suor escorria de sua testa. Ele se virou para o taxista e começou a chorar. O motorista não sabia o que fazer. Ele entrou no carro novamente, com o cachorro no colo. Chorava igual a uma criança, com lágrimas rolando em sua face, nariz fungando, choro compulsivo. O motorista tentou acalmá-lo. Ele disse que tinha que viajar, iria deixar Getúlio com uma colega de serviço, mas ninguém estava na casa. Não tinha como deixá-lo em um hotel de cachorro àquela altura dos acontecimentos, pois os que ele conhecia eram muito disputados e exigiam reserva prévia. Ele repetia a mesma pergunta: “O que vou fazer? O que vou fazer?”. O taxista começou a se envolver com a questão. Perguntou quantos dias ele iria ficar fora. Apenas sete dias, respondeu. Ele continuava a suar e a chorar. O motorista perguntou se Getúlio dava trabalho. Rapidamente respondeu que o cachorro era dócil, educado, fazia suas necessidades apenas do lado de fora do apartamento e que na sacola tinha tudo o que ele precisava para dez dias. “Dez dias?” “O senhor não disse sete?” Ele explicou que sempre colocava comida e remédios além da conta, para situações imprevistas. Vendo a situação de seu passageiro, o taxista se ofereceu para ficar com Getúlio durante aqueles sete dias. Afinal, morava em uma casa, com amplo quintal e suas filhas iriam adorar ter a companhia de um animal por uma semana. Enxugando as lágrimas, ele agradeceu a gentileza, escrevendo em um pedaço de papel os horários dos remédios do cachorro e a quantidade de ração que ele deveria colocar por vez para Getúlio comer. Ainda escreveu seu endereço e o número do seu celular. A ideia era passar primeiro na casa do taxista, mas ao olhar o relógio, ele notou que o tempo de folga que tinha para seu voo tinha evaporado. Eram 10:40 horas. Foram direto para o aeroporto. Lá, ele desceu do carro, afagou Getúlio, mirou em seus olhos dizendo que voltaria logo. Agradeceu ao motorista, pagou o triplo do que marcava o taxímetro, pegou sua bagagem e cruzou a porta do aeroporto sem olhar para trás. O taxista foi para sua casa deixar o cachorro e continuar seu trabalho. Getúlio não estranhou os novos amigos, especialmente as duas meninas, que gritaram de alegria ao vê-lo. A casa tinha um enorme quintal, onde ele se esbaldou de tanto correr, de brincar, de descansar. A mãe das garotas reclamava muito, pois era ela que tinha que dar os remédios para o bichinho, já que seu marido saía cedo para trabalhar, retornando somente no início da noite. Ele dizia que uma semana passava logo. Sete dias depois, passou o dia a esperar uma ligação, pois também dera seu número para o dono de Getúlio. Combinaram de que ele o buscaria no aeroporto. Não houve nenhuma ligação. Poderia ter havido um imprevisto, mas a angústia de receber uma ligação aumentou nos três dias seguintes. Ele tentava ligar, mas sempre a ligação caía em caixa postal. Acabara tudo de Getúlio. Teve que comprar comida e remédios. Achou tudo caro. Sua mulher reclamou dos gastos extras e ainda de ter que dar banho no cachorro, pois ele não cheirava bem depois de dez dias. Ela providenciou o banho. As meninas adoraram. Getúlio também gostava daquele banho de mangueira, no quintal, sob o sol ardente. No décimo quinto dia, o motorista resolveu ir até o prédio onde pegara seu passageiro. Lá chegando, se apresentou ao porteiro. O pior que nem sabia o nome do cara. Mas ao mencionar Getúlio, o porteiro soube de quem se tratava. “Ele não mora mais aqui”, foi a frase que o motorista ouviu. Surpreso, ele quis saber mais, mas o porteiro só sabia que no dia seguinte ao da viagem, a ex-mulher do dono de Getúlio chegou com um caminhão de mudanças e levou tudo do apartamento, que era alugado. O contrato de aluguel tinha vencido no dia da mudança. O apartamento ainda estava vago, com anúncio em uma imobiliária. O porteiro não sabia mais nada. Nem onde a mulher morava, nem para onde o cara tinha viajado. Voltou arrasado para casa. Quis ajudar e foi passado para trás. O que iria dizer à sua mulher? Resolveu não mais trabalhar naquele dia. Ficou sentado em uma praça, vendo a cidade passar em frente aos seus olhos. No início da noite, retornou para seu lar. Ele era o novo dono de Getúlio. Do outro lado do mundo, em Tóquio, ele entra em um pet shop, vê um cachorro, pergunta o preço, mas não o leva para casa. O pequeno cão tinha três anos, completados em 14 de março. Seu olhar pedia para ser levado dali. Uma imensa saudade de Getúlio invadiu seu coração. Pensou em ligar para o motorista, chegando a pegar o celular. Desistiu. Não tinha volta. Sua decisão estava tomada.

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