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terça-feira, 22 de julho de 2014

DANÇA

Para Girão
- Código localizador e um documento, por favor.
- Aqui está. Não se esqueça de colocar meu número do cartão fidelidade.
- Fique tranquila que não deixarei de inserir seu fidelidade. A senhora não marcou assento. O voo está tranquilo por enquanto.
- Quero qualquer assento no meio.
- No meio? Mas há assentos livres no corredor e na janela.
- No meio, por favor.
- OK, senhora, mas fiquei surpresa, pois nunca vi alguém pedir para se sentar no meio. Pelo contrário, as pessoas sempre reclamam quando só restam poltronas do meio.
- Pois eu adoro o meio. Tenho a chance de sentar entre dois guapos. Quem sabe um deles não se torna meu futuro marido...
Sorrindo, a atendente da TAM devolveu os documentos de Giralda, bem como o seu cartão de embarque, desejando-lhe boa sorte.
O voo estava no horário. Embarque previsto para o portão 25, dali a cinquenta minutos. Com um lenço verde na cabeça, batom vermelho nos lábios, um belo vestido estampado com grafismos lembrando uma tela de Mondrian, Giralda foi esbanjando simpatia pelos corredores do aeroporto.
Na sala de embarque, foi a primeira a se apresentar para embarcar, mas antes se certificou que o voo estava cheio. Estava. Abriu um sorriso enorme. Quem sabe aquele seria o dia de encontrar o homem da sua vida.
Sentou-se na poltrona 14B. As pessoas foram entrando. Giralda ficava a mirar os homens. Alguns eram candidatos em potencial para viverem para sempre ao seu lado, mas eles passavam direto. Nunca viu tanta gente passar para se sentar depois da fileira 14. Na frente, tudo estava ocupado. Após meia hora de embarque, ninguém mais entrou. As poltronas ao seu lado vazias, mas as portas da aeronave não tinham sido fechadas, o que deixava Giralda mais apreensiva. Ela tinha acordado com a certeza de que naquele dia ela conheceria seu futuro marido. A comissária usou o sistema de som para anunciar que estavam esperando mais dois passageiros que vinham de um voo de conexão. Eram os companheiros de fileira de Giralda, com certeza.
Mais cinco minutos e um deles aparece. Parrudo, gorro na cabeça, perto de quarenta anos, barbudo. Giralda gostou do tipo, embora o físico não fosse o que idealizara. O cara pediu licença. Estava na 14A. Giralda se levantou, sorrindo para ele. O parrudo nem notou. Pegou um livro na mochila. Giralda olhou de soslaio para ver o título. O cara parecia ser exotérico, pois lia Eram Os Deuses Astronautas?, de Erich Von Daniken. Ela logo o apelidou mentalmente de astronauta.
Entrou outro homem, um pouco mais velho, cabelos grisalhos, corpo esguio, porte atlético, sorriso permanente no rosto. Cumprimentou Giralda com um balançar de cabeça, retirou um livro da sua pasta e se sentou. Mais um leitor ao seu lado.
As portas do avião se fecharam. Os avisos foram dados. A aeronave partiu na hora. Assim que as luzes se apagaram, com o sinal identificando que os passageiros poderiam usar seus aparelhos eletrônicos, Giralda se acomodou na poltrona, puxando papo com o grisalho do seu lado direito, já que o astronauta tinha o olhar fixo para as páginas de seu livro esotérico. Ela queria saber o que ele estava lendo.
Ele fechou o livro, lhe mostrando a capa. Era a biografia de Isadora Duncan. Disse que gostava de dança e que estava indo para Fortaleza para participar de um festival internacional de dança de salão. Giralda se interessou imediatamente, perguntando o nome dele e querendo saber quem era a parceira dele na competição. João Marcos era seu nome. Quanto à parceira, ele ainda não a conhecera, pois o diferencial daquele festival era eles formarem os pares minutos antes das provas. Giralda gostava de dançar e tinha tido aulas durante anos. Atualmente frequentava aulas de dança egípcia.
- Você também se inscreveu para o festival?, perguntou João.
- Não, nem sabia.
- Ainda dá tempo. Porque não se inscreve assim que chegar. Li que terá um balcão do festival no aeroporto. Quem sabe você não dança comigo!
- E você dança bem?
Ele ruborizou. A pergunta foi direta. Ele não queria responder. Devolveu a pergunta.
- E você, já participou de alguma competição de dança?
- Nunca. Apenas apresentações para amigos.
Giralda esforçava-se para ver se João tinha aliança. Quando conseguiu ver as duas mãos, ficou feliz, pois aparentemente ele não tinha nenhum adorno nos dedos.
João insistiu para que ela se inscrevesse. E elogiou o vestido dela. Giralda ficou radiante. Ele quis saber seu nome.
- Giralda. É Geralda, mas com o “i” no lugar do “e”. E antes que você ria, saiba que adoro meu nome.
João riu e Giralda riu junto. Um braço encostou no outro. Giralda viu os pelos do braço dele se eriçarem. Ela viu que ali tinha futuro. E o papo continuou firme até chegarem ao saguão do aeroporto, onde João procurou o balcão do festival para ela se inscrever. Quando ele chegou perto, uma multidão de fotógrafos disparou cliques e flashes. Giralda nada entendia. João pedia apenas que ela se inscrevesse, ao mesmo tempo em que ia sendo levado por uma mulher esguia. Giralda ficou perplexa. Pediu uma ficha, preencheu. Recebeu seu número e as regras da competição. Não viu mais João. Leu o livreto. A competição seria na noite daquele dia. Tinha apenas cinco horas. Pegou um táxi, deixou as malas na casa de seus pais, e foi arrumar o cabelo, pois esta era uma exigência do festival. Aproveitou para renovar a maquiagem. Precisava de um vestido esvoaçante. Lembrou que tinha feito uma compra em um site chinês de um vestido que usaria em um casamento como dama de honra, mas não tinha gostado quando ele chegou. Achou com cara de princesa Disney. Aquele era o momento de usá-lo.
Na hora indicada, estava no centro de convenções da cidade. Nem sinal de João. Seu coração batia forte. Todas as mulheres estavam em uma sala e os homens em outra. Chegou uma notícia ruim. Eram 17 mulheres e 16 homens. Iriam cortam a última inscrita. Giralda ficou apreensiva. Na certa, ela tinha sido a última. Anunciaram que Carol estava cortada, pois aniversariantes não poderiam participar. Sua alegria voltou. A primeira dupla foi chamada. Veio a segunda, a terceira, a quarta, a quinta. Giralda estava inquieta, pois não sabia quem eram os homens que já tinham sido chamados. As duplas se apresentavam e ninguém podia voltar para a sala onde esperavam para ser anunciados.

Giralda foi a última a ser chamada. Suas mãos estavam molhadas. A ansiedade era grande. Entrou no túnel que conduzia ao salão. As luzes eram fortes, ofuscaram seus olhos. Nada enxergava. Uma mão forte pegou em sua mão. Ela olhou de lado, mas estava cega de tanta luz. Entrou confiante. Os gritos da galera a deixaram mais eufórica. Sortearam o ritmo. Dançaria um tango. A música começou e aquela mão forte a conduziu. Dança marcada, sem erros, aplausos sem fim. A música terminou. Apupos de já ganhou, já ganhou ecoaram no salão. Giralda só via luzes e mais luzes. O resultado saiu. Realmente Giralda tinha ganhado a competição. Quando olhou para o segundo lugar viu João Marcos arrasado. Ela não tinha dançado com ele. Quem era seu par? Estava tão cega que sempre achou que João era seu parceiro o tempo inteiro. Esfregou os olhos. Seu companheiro de dança sorria de braços abertos, acolhendo-a em um aconchegante abraço. Era o parrudo astronauta que viajara ao seu lado. Simplesmente, o melhor dançarino de sua vida. Giralda teve a certeza de que aquele era o seu futuro marido.

EXPERIÊNCIA CÓSMICA

Para Carol


Uma batida na porta foi o bastante para Clara acordar. Ainda estava escuro e fazia muito frio. A noite de sono tinha sido tão reconfortante que ao abrir os olhos e se deparar com um crucifixo na parede em frente à cama em que dormia, assustou, pois era agnóstica. Mas logo se deu conta de onde estava.
Era na Casa dos Peregrinos Dom Silvério, na Serra da Piedade, em Caeté.
Hora de se levantar para as atividades do dia. Cinco horas da manhã. Nova batida na porta. Com o cobertor enrolado no corpo, ela abriu a porta e lhe entregaram um copo com três dedos de limão espremido. Tinha que beber antes mesmo de escovar os dentes, fazendo um grande bochecho com água fria para não prejudicar o esmalte de seus dentes. Esta e outras orientações constavam do folheto que recebera ainda no ônibus, na saída da rodoviária de Belo Horizonte.
Clara gostava de viver alternativamente. Já tinha seguido o movimento Hare Krishna quando estudava Direito na UFMG, depois entrou para a Seicho No Ie, largou tudo, virou vegana, leu tudo sobre o auge dos hippies no Brasil, chegando a visitar uma aldeia remanescente da comunidade em Arembepe no litoral baiano. Agora, ela não acreditava em nada, mas gostava de meditação e a ioga lhe proporcionava bons momentos de encontro consigo mesma.
Ao entrar em um ônibus em BH, se sentou em frente ao famoso Jornal do Ônibus. Neste jornal, com informativos de interesse da população, estava pregado um cartão, provavelmente deixado por alguém, com o formato de um passarinho verde. O cartão lhe chamou a atenção. E ficou com uma enorme curiosidade quando viu que no corpo do pássaro tinha um telefone celular e a seguinte frase: venha entrar em contato com o cosmos.
Nem pensou duas vezes, ligou, pegou as informações, especialmente local, data e valor. A atendente insistiu em explicar que não se tratava de um curso, mas de uma experiência transcendental. Clara pegou todos os dados para fazer o pagamento, o que fez pelo próprio celular.
Em dia e horário indicado, estava na Rodoviária de Belo Horizonte, de onde o ônibus com seus colegas de experiência partiu para a Serra da Piedade. No ônibus, ela pegou o folheto com as orientações e dormiu, pois estava muito cansada. A viagem é curta, distante apenas 48 quilômetros da capital mineira. Eram vinte e seis pessoas ao todo. Cada um ficou em quarto individual.
Naquela época não existia peregrinação para o Santuário Nossa Senhora da Piedade, motivo pelo qual a pousada estava liberada para aquela experiência cósmica.
Clara tomou o suco de limão puro fazendo muita careta. Não escovou os dentes, apenas fez um longo bochecho. Em seguida, tomou um banho muito frio, pois o chuveiro elétrico tinha sido desligado para potencializar a experiência. Ao sair do quarto, o silêncio reinava. A meditação já tinha começado.
Nenhum barulho se fez ouvir no refeitório, onde estavam todos para a primeira refeição do dia. Apenas um copo de leite de amêndoas. Clara sorveu o líquido ralo e esbranquiçado com um certo temor de ficar com fome mais tarde.
Um jovem apareceu com uma placa indicando a direção que deveriam seguir. Foram para a beira de um precipício.
O dia amanhecia. O visual era deslumbrante. Tonalidades de azul tomavam conta do céu, que estava repleto de nuvens. A luz do dia ainda era fraca, o que dava à vegetação uma cor também azul. Ali todos se sentaram, abriram a boca, colocando suas línguas para fora. Sempre de olhos fechados. Era o banho de sol na língua, prática comum dos higienistas. Cinco minutos bastavam para matar os germes. Clara achou aquilo engraçado. Queria falar, mas as regras eram claras. Nada de conversas, apenas meditação coletiva.
Quando ouviram o estalar de dedos, fecharam a boca. Um leve gosto de queimado tomou conta do palato. De olhos abertos, fixaram o horizonte e se deixaram levar pelos pensamentos. Clara não sabia em que pensar. Deixou a mente fluir e nada vinha. Sem relógio no pulso, nem celular, era difícil saber quanto tempo estava ali sentada, mirando o nada. Sim, ela mirava o nada, pois de tanto fixar o horizonte, nada mais via. O silêncio foi quebrado por um coro de vozes femininas. Era um coro distante, mas ouvia-se perfeitamente que eram desafinadas. Clara percebeu que a música lhe era familiar. Quando cantaram o refrão, não teve dúvidas. As mulheres cantavam Jesus Cristo, sucesso antigo de Roberto Carlos. Ela sentiu uma vontade enorme de cantar também, mas foi firme. Fixou mais ainda o nada. Alguém do grupo cantou. Outro o seguiu no refrão. Quebraram a regra. Foram retirados dali. Sobraram vinte e quatro. Como eram rígidos os tutores do grupo. A música cessou.
Uma senhora chegou com um galão e serviu suco de tamarindo para todos do grupo. Alimentariam de líquidos? Isto não estava no folheto com as orientações. Assim que todos terminaram de beber, nova tabuleta. Desta vez a orientação era para formarem duplas e se abraçarem. Clara abraçou um homem de uns quarenta anos que estava ao seu lado. O abraço tinha que ser forte. Ficaram juntos, corpo no corpo. Um calor interno subia pelo corpo de Clara. Ela queria se desgrudar do homem, mas tinha medo de ser retirada daquela experiência. Uma eternidade se passou. Ninguém desobedeceu às regras. Hora de voltar a ficar só. Novamente sentados. Novamente olhando para o horizonte. A esta altura, o sol já tinha vencido as nuvens e iluminava a vegetação, cujo verde dominava a paisagem.
Clara ainda tinha dificuldades em mirar o nada. Um oco no estômago. Era a fome. E, como por encanto, uma nova placa indicando almoço. Foram para o refeitório. Uma pessoa espirrou. Três disseram amém. Mais três fora da experiência com o cosmos. Uma variedade de alimentos crus estava em um aparador. Cada um podia se servir à vontade, mas apenas uma vez. Clara colocou somente folhas e brotos de cereais em seu prato. Sentou-se na cabeceira da mesa comunitária. Todos se sentaram na mesma mesa. O silêncio era tanto que o mastigar dos presentes era ouvido. Um ritmo interessante. Alguns mais rápidos, outros de forma vagarosa. Todos absortos na alimentação e em pensamentos. Clara só pensava em quantos ainda restariam ao final do dia, quando a experiência se completaria.
Após o almoço, todo mundo teve que se sentar em redes, levantar a blusa, deixando a barriga de fora. Na altura do umbigo, colocaram uma toalha molhada em água gelada. Em quinze minutos, a toalha estava seca. Nas orientações estava escrito que aquilo facilitava a digestão. Clara pensou que qualquer coisa facilitaria a digestão daquele almoço. Em seguida, todos foram para seus respectivos quartos, que estavam completamente fechados, sem nenhuma nesga de luz. Clara se deitou, mas não tinha sono. Uma música instrumental suave e um aroma de flores silvestres invadiu o ambiente. Novo mergulho em pensamentos. Clara, enfim, conseguiu pensar em algo. Pensava em seu gosto musical. Muito rock, especialmente de Guns N’ Roses. Pensou tanto que achou que tinham mudado o tipo de música, pois poderria jurar, caso acreditasse em juras, que o som que ouvia era a voz de Axl Rose. Estaria delirando?
Uma batida na porta indicou que era hora de sair novamente do quarto. O frio da manhã tinha ido embora, deixando em seu lugar um calor gostoso. Todos foram para a beira de um tanque do tamanho de uma piscina semiolímpica. Um forte aroma de mel se fez sentir. Quando Clara olhou para dentro do tanque, viu um enxame de abelhas. Uma placa indicou que eles deveriam se despir e entrar no tanque. Nove pessoas se recusaram, pois tinham medo de picadas de abelha. Clara continuava firme e forte. Sem pudor, tirou sua roupa e deixou o frescor da brisa envolver seu corpo. Entrou bem devagar no tanque com o auxílio de uma escada. O contato com o mel foi esquisito. Aquele líquido viscoso, as abelhas pousando em seu corpo. Ela fechou os olhos e se deixou levar. Quando deu por si, estava sentada, cabelos grudados, mas feliz. Não percebeu que mais quatro pessoas tinham sido retiradas da experiência. Restavam oito pessoas. Para Clara, a experiência no tanque de mel durou horas. Mas foram apenas quinze minutos. Quando saiu, um homem jogava um forte jato de água gelada no corpo de cada um, retirando rapidamente o mel que estava agarrado.
Clara recebeu uma toalha, enxugou, vestiu sua roupa e foi para a direção indicada. Era uma gruta, onde se sentou, tomou um outro copo de suco de tamarindo e mirou a escuridão do local. Ali ficou até o final do dia. Viajou em pensamentos, em ideias, fazendo um balanço de sua vida até ali. Quando a chamaram, não tinha mais ninguém com ela. Uma mulher lhe abraçou, parabenizando-a pela conquista. Tinha conseguido chegar ao final do dia sem quebrar as regras. Era hora de vivenciar o cosmos. Duas pessoas se encarregaram de despi-la, lavá-la com água perfumada, enxugá-la, vestindo-a novamente, desta feita com uma túnica azul. Clara foi conduzida para uma cabana dominada também pela cor azul. Deitaram-na em uma esteira e saíram. Ela ficou ali, estática.
Uma voz feminina pediu para ela imaginar uma luz azul envolver o seu corpo. Clara começou a rir por dentro, sem emitir sons. Já tinha tido aquela experiência anos atrás. A voz continuou suavemente a falar em azul, em azul, em azul. Clara sentiu um formigar pelo corpo, uma dor intensa nas juntas, até não aguentar mais e desmaiar. Quando acordou, tudo era vermelho em sua volta, até a túnica que usava. Um enorme ovo ornava o ambiente. Uma voz ríspida ordenou que ela acordasse. Não via ninguém, apenas uma fumaça do tipo de gelo seco. Uma ventania. O vermelho virou amarelo e, em seguida, virou verde. Um pássaro verde entrou no ambiente onde Clara estava. Era o mesmo pássaro do cartão que ela pegara no ônibus em BH. O passarinho voou ao redor dela e pousou em seu braço. Abriu o bico, mas nenhum som se ouviu. Ele mirou o ovo, levantou voo e se chocou violentamente contra aquele grande ovo, que se partiu em milhares de pedaços, deixando seu líquido tomar conta de todo o ambiente. Clara e clara se tornaram uma única matéria. A experiência cósmica se completara.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

UM TESTE, UMA VIAGEM

para Luena

Estava atrasada e não conseguia achar uma vaga no estacionamento em frente à clínica. Já tinha dado três voltas e nada.
Pegou o celular para avisar que estava em frente ao prédio, mas ainda sem conseguir parar seu carro, quando um senhor com semblante fechado caminhou em sua direção. Ele fez cara de poucos amigos, olhou bem no fundo dos olhos dela e apontou para um carro preto. Ele não conseguiria sair se ela continuasse parada onde estava.
Lu sorriu para o senhor, colocou a primeira marcha e puxou o carro para frente, ligando a seta para mostrar seu interesse em estacionar exatamente na vaga do sedan preto.
O senhor continuou com a cara fechada, entrou em seu veículo, deu a partida e saiu, sem nem mesmo fazer um aceno de cabeça em sinal de agradecimento. Quando Lu engatou a ré, viu um carro entrando na vaga. Ela buzinou, gritou, mas a motorista nem ligou. Acabou de parar seu carro, pegou uma bolsa enorme, ajeitou os óculos escuros no rosto, deu uma balançada na cabeça para arrumar o cabelo, olhou para Lu, beijou o ombro e saiu a rebolar.
Lu ficou furiosa. Sua vontade era de pegar aquela mulher e guilhotiná-la, no melhor estilo francês.
Assim que a ladra de vaga sumiu do seu alcance visual, Lu saiu de seu carro, abriu a bolsa, procurando alguma peça pontiaguda. Achou uma pinça. Servia. Foi até o carro da mulher, abaixou perto de um pneu, tirou a tampa da sua válvula e usou a pinça para esvaziá-lo. Não se importou se alguém a via fazendo aquilo. Até achava bom se isto acontecesse. O ato de esvaziar o pneu fez tão bem a ela que resolveu repetir o procedimento em todos os outros pneus do carro.
Sorrindo, voltou para seu carro e deu mais uma volta. Desta vez com sucesso. Duas vagas ao fundo do estacionamento a aguardavam. Escolheu a que era mais fácil para entrar, estacionando perfeitamente. Ao sair do carro, repetiu, de forma instintiva, os mesmos gestos da mulher ladra de vaga. Arrumou os óculos no rosto, deu uma sacudida no cabelo e beijou o ombro. Quem viu, nada entendeu. Entrou no prédio da clínica com uma sensação de leveza inacreditável.
Na portaria, teve que se identificar, posou para uma foto digital e recebeu uma senha para digitar na catraca antes de alcançar os elevadores. Claro que Lu reclamou da senha, afirmando, em tom enérgico, que o mundo estava sendo dominado por senhas e que ela não mais lembrava de nenhuma. Tinha um aplicativo no seu smartphone que tinha a função única de guardar senhas. Para acessá-lo, uma senha era necessária. Mas era a única que memorizava. A senha que acabara de receber era a centésima oitava que entrava em sua lista.
Os seis números foram digitados. O painel da catraca indicou que ela podia passar. Eram oito elevadores modernos. O andar devia ser apertado do lado de fora. Dentro do elevador nenhum painel, apenas um botão para ser usado em caso de emergência. Décimo quarto andar. Era o piso onde ficava a clínica ortomolecular onde tinha um horário marcado para fazer um teste de intolerância alimentar.
Nova recepção, nova identificação. O convênio não cobria. Pagamento antecipado: R$ 490,00. Ao perguntar se aceitavam cartão, obteve a resposta que somente de débito. Fez o pagamento e pediu recibo.
A recepcionista, na maior cara de pau, disse que com recibo tinha que acrescentar R$ 50,00 no preço. Lu ficou furiosa, ameaçou ligar dali mesmo para a fiscalização de tributos. Chegou a pegar seu telefone para isto, mas não foi preciso. A recepcionista disse que faria uma concessão. Não cobraria a taxa extra, mas emitiria o recibo.
Ela disse que o teste estava atrasado, com duas pessoas na frente de Lu, mostrando onde ela deveria esperar. Na salinha indicada, um homem triste, com roupa em tons sombrios, e a mulher ladra de vaga. Lu olhou para ela e sorriu. Um sorriso leve, discreto, nem de longe a gargalhada sonora que passava em sua cabeça. Logo o homem triste entrou na sala do teste. As duas ficaram sós, olhando uma para a outra. Lu pegou uma revista Caras. Excelente oportunidade para ver fotos de famosos e outros não tão famosos assim. Na verdade, ela não conseguia distinguir quem era quem, sendo necessária a leitura das pequenas legendas. Mesmo assim, continuava sem saber quem eram aquelas pessoas que ilustravam a revista semanal.
O homem triste saiu do teste mais triste ainda. Sem dar uma palavra, olhava para o chão e assim seguiu até sair da sala.
Chamaram Andressa. Era a mulher que lhe roubara a vaga do carro. Ela entrou, mas logo saiu. Não era o teste que ela tinha marcado.
Chegara a vez de Lu. Assim que entrou, foi acomodada em uma cadeira do tipo que os dentistas utilizam. Entrou, então, a mulher que aplicaria o teste. Era pálida, com cara amassada, olhar profundo, cabelo liso, como de uma índia, mas com uma enorme mecha branca. Na orelha esquerda, uma pena rosa servia de brinco. Tinha as mãos trêmulas. A mulher balbuciou qualquer coisa, mas era impossível entendê-la. Lu viu o crachá, no qual estava escrito Glenda.
Recebeu um formulário para preencher. Pedia informações de possíveis reações alérgicas ao longo da vida, se era fumante, se bebia, se praticava alguma atividade física, se tomava remédio de uso contínuo, se tinha sido submetida a alguma intervenção cirúrgica, e coisas do gênero. Lu preencheu a ficha e a entregou de volta para Glenda, que continuava a falar palavras ininteligíveis.
Glenda se aproximou da cadeira e suas mãos trêmulas foram empostadas junto ao umbigo de Lu. A mulher entrou em transe. Que teste é este? Era a pergunta que Lu não parava de fazer, mas não obtinha resposta. Glenda revirava os olhos, as mãos ficando mais e mais trêmulas. Uma haste de cobre começou a rodar por cima da cadeira. Havia um pêndulo na ponta da haste. Lu ficou com medo daquele pêndulo cair em sua cabeça. Lu não conseguia se mexer. O corpo estava inerte na cadeira, mas a mente estava em alta atividade. Os olhos fixavam o pêndulo, mesmo sem querer fazê-lo. As mãos de Glenda percorriam todo o corpo de Lu, sem contudo tocá-lo. Seus pensamentos começaram a ficar confusos. Sua mente a levava para outro lugar. Local familiar, local há pouco visitado. Era o estacionamento em frente ao prédio onde ficava a clínica. Viu seu carro perfeitamente estacionado. Viu a ladra de vaga explodir de raiva ao ver os quatro pneus esvaziados. Ela gritava ao telefone com alguém, dizendo que estava atrasada e uma cadela tinha feito aquilo com o carro dela. Lu riu muito. Riu alto. Gargalhou. Glenda aumentou a velocidade de suas mãos pelo corpo inerte da sua paciente e Lu voou dali, alçou alturas inimagináveis. Mas ainda sentia a presença de Glenda, a presença das mãos daquela mulher pálida envolvendo seu corpo.
Um túnel negro, com luzes coloridas aparecendo aqui e acolá. Lu viajava, mas não sabia para onde. Na cadeira, estava imóvel, seu corpo não obedecia aos comandos que vinham da parte do cérebro que não tinha viajado. A outra parte, bem maior, se regojizava ao ver quadros, esculturas, fotografias. Não sabia onde, mas sabia que viajava pela cultura, pela história.
O vestuário que passava à sua frente foi ficando antigo e mais antigo. Não mais via carros, apenas carruagens, cavalos, gente andando a pé por ruas sujas, apertadas, cheia de mendigos pedindo comida. Um rio cortava a vila onde se encontrava. De repente, sua viagem chegava ao fim. Ela se viu em um aglomerado de pessoas que gritavam palavras de ordem. As pessoas estavam eufóricas, como se algo muito importante estivesse por acontecer. Ela vivia a história, era testemunha viva de um acontecimento que mudaria o mundo.
Um menina ficou ao seu lado. Pegou na sua mão. Lu ficou encantada com a garota e lhe perguntou o nome, recebendo uma resposta evasiva:
- Você sabe qual é o meu nome.
Lu insistiu e ela lhe respondeu que se chamava Amanda. A menina lhe olhou ternamente, lhe chamou de mãe e disse: 
- Hoje é 14 de julho de 1789, dia de seu aniversário. A Bastilha está caindo! Você não pertence a este tempo. Ainda vamos nos encontrar novamente um dia.
Lu não viu mais nada. Sua mente voltou a viajar, entrando em modo inacreditavelmente veloz para retornar à sala do teste.
Glenda já não mais tinha as mãos trêmulas. Parecia bem mais amigável. Disse para Lu que o teste tinha sido perfeito. Ela tinha apenas uma intolerância alimentar: cítricos.
Lu tentou falar sobre sua experiência de regressão, mas Glenda saiu da sala. Lu ficara só. Pegou suas coisas e saiu. Olhou no calendário da parede a data. Era 14 de julho de 2014. Dia de seu aniversário. Amanda a esperava em casa para comemorarem juntas. O bolo? Sabor limão.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

CONFRARIA VINUS VIVUS - 88ª REUNIÃO

Em 07 de julho de 2014, a Confraria Vinus Vivus se reuniu pela 88ª. A noite foi diferente, uma verdadeira “orgia” enogastronômica, pois nosso encontro ocorreu no restaurante Dom Francisco, na ASBAC, quando apreciamos o banquete da paca. O confrade Abílio foi a baixa da vez, sendo substituído por Kadu. Eis os vinhos da noite.

Vinho 1 – Clos Morgador

  
Safra: 2010.
Álcool: 15%.
Casta: 40% garnacha, 40% cabernet sauvignon e 20% shiraz.
Produtor: Isabelle i René Barbier para a vinícola Clos Morgador.
Região: Priorato (Priorat), Espanha.
Cor: rubi, com toques violáceos na unha.
Aromas: framboesa, amora, frutas negras, ameixa, alcaçuz, chocolate.
Boca: seca a língua, quente, acidez bem presente, taninos não rugosos, jatobá, adstringente, deixa um amargor na boca, encorpado, mas não tem peso.
Estágio: 12 meses de barricas de carvalho francês.
Importador: Mistral.
Valor: R$ 470,00.
Harmonização: cordeiro, costela bovina assada.
Observação: guarda de 10 anos. Foi o campeão da noite, sendo o preferido de Fernanda, Keller, Cláudia, Leo Ladeira, Kadu e Marquinho.

Vinho 2 – Quinta da Falorca


Safra: 2000.
Álcool: 13,5%.
Casta: touriga nacional, tinta roriz e rufete (tinta pinheira).
Produtor: Quinta Vale das Escadinhas.
Região: Dão, Portugal.
Cor: granada.
Aromas: estábulo, feno, serragem, tabaco.
Boca: ferro, com um final de boca muito azedo.
Estágio: 24 meses em barricas de carvalho, sendo 60% novas e 40% de segundo uso, e mais 30 meses em garrafa.
Importador: World Wine.
Valor: R$ 511,00.
Harmonização: carne de caça, faisão, arroz de pato.
Guarda: 15 a 20 anos.

Vinho 3 – Carrocel


Safra: 2008.
Álcool: 13%.
Casta: 100% toruiga nacional.
Produtor: Quinta da Pellada.
Região: Dão, Portugal.
Cor: bem escuro, quase negro.
Aromas: esteva, arbusto, folha verde esmagada, floral.
Boca: taninos e acidez equilibrados, defumado, amargo.
Estágio: 14 meses em barricas de carvalho francesas de primeiro uso.
Importador: Mistral.
Valor: R$ 570,00.
Harmonização: comida pesada.
Guarda: 10 anos.
Observação: o preferido por Leo Soares, Vera, Bruno e Jarbas.

Após a degustação, teve início o banquete da paca:

01) Cotechino de javali


02) Salada de legumes grelhados (chuchu, maxixe, quiabo, jiló, abobrinha, shitake e cogumelo paris), tomate, alface frisée, cebola, endro; temperada com vinagrete de bacuri, maracujá natural, azeite e sal


03) Ragu de paca com polenta mole


04) Paleta de paca com molho de arubé e musseline de mangarito


05) Pancetta de paca com molho de jabuticaba e mangarito sautée


06) Pernil de paca recheado com pancetta, lingüiça e cogumelos, servido no molho da assadeira e arroz multigrãos (17 grãos)

Para a harmonização com todos os pratos do banquete, utilizamos os vinhos da degustação e ainda:


Colinas Brut Rosé 2009 – espumante da produtora Colinas de São Lourenço, região da Bairrada, Portugal, com 12,5% de álcool, feita com as castas pinot noir e pinot meunier.


Aloxe-Corton Domaine Pavelot – feito por Jean Marc e Hugues, safra 2010, produzido na região da Borgonha, França, com 13% de álcool, 100% pinot noir.


Greg Norman – vinho branco elaborado com a casta chardonnay, produção da região da Califórnia, Estados Unidos, 14% de álcool, safra 2010.


Carm Reserva – safra 2007, produzido na região do Douro, Portugal, com 13,5% de álcool, com várias castas portuguesas em sua elaboração.

vinho

gastronomia

domingo, 6 de julho de 2014

SONS DA NOITE

Para Maíra

Depois de sofrer morando em um albergue em Genebra, onde o banheiro era coletivo e se ouvia absolutamente tudo o que seu vizinho de quarto fazia, Janaína, enfim, se mudou para Berlim, onde terminaria seu curso. Sua maior vontade era retornar para o Brasil, mas ainda faltavam alguns meses de dedicação à sua especialização em direitos humanos. A vida não era fácil, pois sua família e amigos estavam longe. Para amenizar a solidão, um namorado alemão. Mas não se encontravam sempre, pois ele morava em outra cidade, mais ao norte do país. Com a mudança para Berlim, ficariam mais próximos, com mais possibilidades de passarem os finais de semana juntos. Janaína resolveu dividir um quarto com uma colega de curso, uma belga, Marjorie. Mas a convivência em um mês mostrou que seria impossível dividirem o mesmo teto. Marjorie era bisbilhoteira, gostava de mexer nas coisas de Janaína. Revirava a bolsa, as gavetas, os bolsos das calças. E quando Janaína entrava em casa, ela sempre estava sentada no sofá, esperando-a chegar, com olhos arregalados, com olhar perdido no horizonte. Sempre dizia a mesma frase: "demorou para chegar, estava preocupada". Em dez dias morando juntas, Janaína se sentia sufocada pela belga, que a cobria de perguntas, mostrava objetos retirados de sua bolsa e os sacudia no ar, questionando o que significava aquilo. Eram coisas como chaveiros, porta comprimidos, bilhetinhos do namorado. Invasão de privacidade. Para piorar, Marjorie gostava de pegar blusas e meias "emprestadas" de Janaína. Era hora de encarar um local sozinha. Procurou bastante até decidir por um pequeno apartamento nos arredores de Berlim, um quarto e sala. No prédio, a maioria dos moradores era estudante. Para a limpeza semanal dos apartamentos, o condomínio tinha uma empregada antiga, Herta. Ela conhecia todo mundo, seus hábitos, suas preferências, suas manias. Isto sem nunca ter trocado mais que meia dúzia de frases com os moradores. Seu conhecimento vinha da observação dos objetos encontrados nos apartamentos, na decoração, no modo de guardar as coisas, nas roupas e acessórios. Quando Janaína alugou, avisaram que Herta tinha a chave de todos os apartamentos, assim como o zelador do prédio e o dono do imóvel, motivo pelo qual ela não poderia trocar as chaves sem antes avisar. O dia da limpeza era da alçada da empregada, mas garantiram que ela nunca falhara. Sua visita aos apartamentos era semanal. A limpeza não incluía lavar e passar a roupa. Janaína escolheu um apartamento mobiliado, pois não queria ter trabalho de comprar móveis e eletrodomésticos. Afinal, só ficaria ali por mais cinco meses. Quando conheceu o apartamento, sua preocupação maior era com a claridade no quarto, pois tinha dificuldades de dormir em ambientes iluminados, não importava em que intensidade. Percebeu que as persianas não garantiriam uma escuridão total no quarto. Encomendou um blackout. Só se mudou quando o quarto estava imerso no breu. Chegou, enfim, o dia de dormir pela primeira vez naquele apartamento. Depois que acabaram as atividades na escola, resolveu passar em uma lanchonete com alguns colegas de escola. Ligou para seu namorado, combinando um final de semana em Berlim. Quando colocou a chave na fechadura da porta de entrada, única porta de acesso ao apartamento, o relógio já apontava mais de onze horas da noite. Estava com muito sono. Tirou a roupa, escovou os dentes e tomou um banho. Colocou seu pijama de flanela, ideal para aquelas noites frias que anunciavam um inverno rigoroso. Borrifou um delicado perfume no pescoço e deitou. As luzes do quarto estavam apagadas, mas a luminária no criado mudo do lado direito da cama ficou acesa. Ela leu um pouco um texto em alemão que seu orientador de tese lhe dera para estudar. Duas páginas e o sono chegou. Apagou a luz. A escuridão se fez. Mesmo assim, ela colocou uma máscara de dormir. Pousou a cabeça no travesseiro e se entregou ao deus do sono. Uma freada brusca, uma batida seca, um grito de socorro ecoaram no ar. Parecia muito perto, mas seu apartamento era de fundos, dando para um jardim bem cuidado, longe da rua. Nem adiantava tentar ver alguma coisa pela janela. Resolveu ficar onde estava, deitada. Ouviu um choro. Correria, gente falando alto. Ela continuou na cama, imóvel, mas perdeu o sono. Mil pensamentos do que poderia ter acontecido. Será que tinha alguém ferido, alguém morrera? Enfim, uma sirene de ambulância. Mas quem poderia afirmar que era uma ambulância? Poderia ser o carro de bombeiros ou mesmo a polícia. Um alarido continuava forte no ar. Ela não distinguia o que conversavam, mas sabia, pelo tom utilizado, que era preocupante. Não sabe quanto tempo durou, mas tudo voltou ao silêncio depois que uma sirene tocou novamente. Um barulho constante, mas que foi diminuindo até desaparecer. Janaína mexeu na cama. Virou de um lado para o outro, mas seu sono já tinha galopado para o além. Era hora de contar carneirinhos. Ficou a imaginar carneiros coloridos pulando uma cerca. Mas que bobagem, pensou. Carneiros não pulam cercas. Ou pulam? Registrou que precisava satisfazer aquela curiosidade tão logo se levantasse. Iria consultar o oráculo maior da atualidade, o Google. Um choro cortou o ar. Era um bebê. Logo ela mudou de ideia, pois um gato miou alto. Gatos imitam bebês quando novinhos.  Outro gato. Era uma briga de felinos. Alguma gata no cio. Aqueles sons noturnos estavam deixando Janaína incomodada. Novo ruído se fez ouvir. Era um barulho de salto batendo no chão, em piso de madeira. Seria a vizinha andando pelo apartamento de cima? Janaína tirou a máscara, acendeu uma luz, pegou sua bolsa, pois lembrara que ela tinha um protetor de ouvido que ganhara em um voo internacional. Revistou toda a bolsa e nada encontrou. Será que Marjorie tinha pegado os protetores auriculares? Ao mexer na bolsa, achou estranho que um chaveiro diferente estava lá dentro. Tinha o formato de um peixe estilizado. Marjorie era vidrada em peixes. O que o chaveiro de Marjorie fazia dentro de sua bolsa? Enquanto procurava seu protetor de ouvido, Janaína percebeu que os barulhos não mais existiam. Voltou para a cama, na mesma escuridão, com a mesma máscara e sem os protetores auriculares. O silêncio reinou até que um novo ruído invadiu o ar. Era uma máquina. Era a casa de máquinas do elevador do prédio. Seu apartamento ficava no quinto e último andar, bem próximo à casa de máquinas. Alguém precisava do elevador para subir ou para descer. Ela não tinha ouvido nada antes, mas com o silêncio total, e um ouvido apurado, aquele som se fez ouvir e a incomodou. Não conseguia dormir. Era hora de apelar para um remedinho. Pegou o frasco que ficava sempre à mão, não importava onde fosse dormir. Uma melatonina sublingual. Sempre foi tiro e queda. Sabor chocolate debaixo de sua língua. Rapidamente, Janaína entrou naquele estado que não se sabe se está acordado ou se já dorme. Os sons continuaram, mas não mais a incomodavam. Estava relaxada. Sorria sem motivos. Novamente a casa de máquinas deu sinal de vida. O elevador se movia. Janaína enxergava luzes coloridas, mas o quarto permanecia no escuro absoluto. Estava sonhando? O som do elevador foi ficando mais e mais perto. Até que ele parou. Era no seu andar. O ranger da porta do elevador se fez ouvir, já que era antigo e precisava de um lubrificante em suas estruturas de metal. Passos andando no corredor. Passos que se aproximavam do apartamento de Janaína. Ela começou a suar frio, mas estava paralisada na sua cama. Os passos eram mais nítidos. Toques secos no chão. Alguém que usava sapato com sola de borracha. A pessoa parou de andar. Janaína ouviu o tilintar de chaves. Este ruído estava bem próximo. As chaves caíram no chão. A pessoa praguejou. Tossiu. Voz rouca. Não deu para identificar se era homem ou mulher. Novo tilintar de chaves. Barulho de chave entrando no tambor da fechadura da porta. Janaína suava cada vez mais frio. O lençol estava encharcado. E não era qualquer porta. Era a porta de seu apartamento. Janaína ficou petrificada. Ela ouviu o rodar da chave na fechadura, a porta se abrindo, os passos que ouvira do lado de fora agora estavam em sua sala. A porta se fechou. A chave entrou no tambor novamente. Ouviu o seu girar na fechadura. Não ouviu mais nada.