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quinta-feira, 17 de abril de 2014

CACOS DE UMA TAÇA DE CRISTAL

para Cris


A festa já rolava há mais de três horas. Turma de amigos que eram também colegas de trabalho. Um jantar na casa de um deles, preparado por Edcléia, uma amiga do grupo que morava em outra cidade. Animação geral, com eclética trilha sonora. Na medida em que o tempo passava e o teor etílico no ambiente aumentava, os estilos musicais também se modificavam. Naquela altura, era o funk o ritmo da vez. Clarissa dançava sensualmente provocando gargalhadas das mulheres e um certo rubor nos homens presentes. Ela adorava mostrar o quanto tinha aprendido em suas aulas de dança. Seus olhos fixavam apenas um par de olhos em toda a festa e não eram olhos da turma ruborizada. Resolveram apagar as luzes e aumentar o som. O dono da casa ficou preocupado com o barulho e as possíveis reclamações que não tardaram a acontecer. Logo o interfone tocou. Era o porteiro pedindo para abaixar o volume, pois o vizinho do terceiro andar tinha ligado reclamando que queria dormir. Geane era a mais animada, batendo palmas e achando tudo lindo, embora tenha sido uma das poucas a não ir para o centro da sala, cujos móveis já tinham sido arrastados para as laterais. Ela tinha acabado de chegar de um retiro onde praticara a meditação por longos dez dias. Como a galera insistia para ela também dançar, resolveu fazer outra coisa. Começou a recolher pratos, talheres e taças usados, levando-os para a cozinha. O anfitrião, ao perceber aquilo, tentou impedi-la, dizendo que no dia seguinte uma pessoa arrumaria a casa. Geane ignorou os apelos e continuou a retirar os utensílios do serviço de jantar. Para desespero do anfitrião, ela arregaçou as mangas e começou a lavar os talheres. Ali na cozinha ela balançava o quadril no embalo da música de Mr. Catra que animava a turma lá na sala. Terminou os talheres, passando para os pratos, tudo sobre o olhar atento e preocupado do anfitrião, que vendo que não adiantavam os pedidos para ela parar, pegou um pano de prato e passou a enxugar o que Geane punha no secador de pratos. Enfim, era a vez das taças. Ele pegou a esponja própria para lavá-las, com a intenção de trocar de lugar com Geane na pia, mas não conseguiu. A esponja quase foi arrancada de suas mãos. E num ritmo cadenciado, ela entrou em um transe, passando a esponja com suavidade em cada taça, como se acariciando aqueles finos objetos. Foi assim com a primeira, a segunda, e todas as demais, até que chegou a última delas. O anfitrião não acreditou no que passou a presenciar. Geane olhou para a taça, fechou os olhos, envolvendo-a em suas mãos. Um tremor pelo corpo, como se fosse um espasmo muscular, e uma pressão forte dos dedos quebraram a taça, voando estilhaços para todos os lados. O sangue jorrou quente, vermelho, caudaloso, vivo. Ela ficou parada, como se não sentisse nada. O anfitrião não sabia o que fazer. Sacudia a mulher? Tirava o que restara da taça de suas mãos? Colocava a mão cheia de sangue debaixo da água corrente que escorria da torneira da pia? Chamava alguém na sala para ajudar? Ficava quieto? Ver sangue não era o seu forte. E logo veio o escuro em seus olhos. A queda foi consequência. Geane continuou em pé. O sangue ainda escorria forte entre seus dedos. O barulho do corpo do anfitrião batendo no chão foi ouvido da sala. Logo a turma estava toda na cozinha. Cada um pensava uma coisa diferente, mas a ideia comum era que Geane tinha feito alguma coisa com o anfitrião. Como ele tinha caído perto dos pés de Geane, o sangue que estava no chão sujou sua pele, parecendo que ele estava ferido. Os cacos de cristal pelo chão só podiam indicar que ele fora ferido por Geane. Alguém gritou para chamar uma ambulância. Outros gritaram para chamar a polícia. Edcléia e Clarisa já tinham partido. A noite era uma criança para aquelas duas que amavam um amor proibido. Sacudiram Geane, mas ela não saía do seu transe. Observaram que o anfitrião respirava normalmente, o que gerou um alívio na turma. A ambulância chegou rápido. Primeiro atenderam o homem caído no chão. Com alguns procedimentos de rotina, os profissionais de saúde conseguiram com que o anfitrião se recuperasse do desmaio. Ele logo esclareceu que Geane não tinha culpa de nada. E ela continuava em pé, olhos fechados, mãos cerradas nos cacos da taça de cristal, sangue pisado pelo corpo, rígida. Custaram a tirá-la da cozinha, colocaram-na em uma maca e partiram para o pronto socorro mais próximo. Na ambulância, dois amigos foram juntos. A festa acabara. No dia seguinte, o anfitrião viajou a trabalho. Seriam três semanas no outro lado do mundo, no Timor Leste, onde teve dificuldades de comunicação com o Brasil. Não soube de nada em relação à Geane. Ficou preocupado com a falta de notícias, mas o jeito era esperar a sua volta. Concluída a tarefa no exterior, o anfitrião retornou para casa. Ao abrir a porta, um forte cheiro de ferro entrou por suas narinas. Seria o sangue de Geane que ainda estava na casa? Não era, pois o apartamento estava completamente limpo, arrumado, conforme ele tinha combinado com Maura, sua diarista, que também deixara na mesinha de canto as cartas que chegaram durante sua ausência. Desarrumou a mala, tomou um banho, deitou. Estava muito cansado, mas não conseguiu dormir. Resolveu ligar para saber notícias de Geane. Ninguém atendeu suas ligações. Pensou o pior. Tomou um remédio para dormir e em dez minutos já estava em sono profundo. O dia já ia longe quando acordou. Era domingo. Aproveitou o tempo livre para ler as correspondências. Um envelope de cor vermelha lhe chamou a atenção. Vinha dela o cheiro de ferro. Tentou abrir, mas não conseguiu rasgar o papel. Forçou bastante, quando um líquido vermelho, como sangue, começou a escorrer do interior da carta. Ficou apavorado, mas continuou. Quando conseguiu romper o envelope, cacos de cristal caíram pelo chão da casa. O interfone tocou. O porteiro disse que uma mulher chamada Geane tinha deixado na portaria um pacote no dia seguinte daquela festa. Ele interfonou para avisar que estava subindo para entregá-lo. Se Geane deixara o pacote, sinal que ela estava bem. Respirou aliviado. Ao abrir a caixa de papelão, uma surpresa. Era uma taça de cristal novinha, igual à que Geane tinha esmagado com suas mãos. Um bilhete acompanhava a taça. Uma simples frase: aceite esta taça como um pedido de desculpas. Um sorriso leve apareceu em seus lábios. Olhou para o chão. Os cacos que caíram do envelope vermelho tinham desaparecido. Procurou o envelope e nada achou. Estaria louco? Talvez fosse efeito do remédio aliado à fadiga da longa viagem contra o fuso horário, pensou. Colocou a taça na mesa ao lado da porta e só então percebeu que o porteiro ainda estava em pé em sua frente. Agradeceu e, quando ia fechar a porta, o porteiro lhe fez uma observação: “acho que o senhor cortou a mão com alguma coisa, pois ela está cheia de sangue”. O anfitrião foi ao chão.

conto

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