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sábado, 19 de abril de 2014

CORAÇÃO NA BOCA

para Karina


Ao acionar o controle remoto para abrir o portão da garagem do prédio onde morava, Frida teve uma sensação ruim. Ficara fora por dez dias, viajando a serviço, e não tinha mais visto Kellington, seu vizinho do terceiro andar. Eles se conheceram no elevador e começaram um relacionamento. A princípio, tudo eram flores, mas com o passar das semanas, o casal começou a ter um esgarçamento na relação. Um dia antes de Frida viajar, os dois discutiram muito por causa de um suposto caso amoroso paralelo que, segundo Kellington, Frida cultivava, peleja que durou a madrugada inteira. Inseguro com a desenvoltura de sua namorada, ele aproveitou que ela estava no banho para vasculhar seu celular. Dois dias antes, ele a viu digitar sua senha, de fácil memorização. Assim, teve acesso às mensagens enviadas e recebidas no telefone de Frida. Uma conversa longa lhe chamou a atenção. E foi por causa desta troca de mensagens que os dois discutiram durante horas. Frida voltou arrasada para seu apartamento. Era o fim. A viagem de trabalho serviu para amenizar a angústia, mas a realidade seria novamente encarada quando ela voltasse. E aquele momento que não queria que acontecesse chegou. Ao entrar na garagem, era obrigatório passar pele vaga de Kellington. Temia ver o seu carro. Pela hora, já no início da noite, a possibilidade de ver o carro era muito grande. Não deu outra. O Fiat Idea Adventure estava estacionado. O coração veio à boca de Frida. Ficou desconcertada. Quase bateu o seu carro na pilastra ao engatar a ré para estacioná-lo em sua estreita vaga. Pegou o elevador. As batidas do coração preenchiam a boca, os olhos, os ouvidos, o nariz. Era difícil sorver o ar. O elevador parou no terceiro andar. As pernas bambearam, uma nuvem escura tampou sua visão. O estômago estava vazio, mas a ânsia de vômito foi fatal. A porta se abriu e uma senhora apareceu. Queria descer, mas Frida estava subindo. Estava mais alva do que era. A senhora percebeu que algo não estava bem, perguntando-lhe se precisava de ajuda. Frida nada respondeu. Seus pensamentos estavam em outra dimensão. A porta se fechou. Mais um andar. Seu andar. Cambaleando foi até a porta de seu apartamento, passando por sua nova vizinha, a mineira Karina, sempre pronta para ajudar. Obviamente que Karina lhe ofereceu ajuda, mas Frida passou reto. Custou para abrir sua porta. Entrou, viu o sofá e caiu nele. Ficou por mais de duas horas sem sair do sofá. O pensamento estava a mil. Tinha que vencer aquele sentimento forte. Era hora de sair. Elaine, sua amiga mais próxima, tinha lhe falado sobre um ótimo bar que inaugurara há uns três meses na cidade. O diferencial eram os garçons, cada um mais interessante do que o outro, segundo ela. Decidiu sair. Tomou um longo banho, colocou um vestido esvoaçante, uma sandália confortável, pouco maquiagem no rosto, chamou um táxi, pois queria beber para esquecer de tudo. Sairia sozinha. Usou um aplicativo no seu celular para pedir um táxi, que logo chegou. No carro, deu o endereço para o motorista. Durante o percurso até o bar, seus pensamentos revolviam um passado recente. Nem viu o carro parar. O motorista teve que falar mais alto para ela voltar ao mundo real. Pagou o preço que indicava o taxímetro e desceu. O letreiro do bar chamava a atenção de quem passava, em estilo retrô, um neon forte, cintilava o seu nome “Antonio’s Bar”. Tinha muita gente do lado de fora, principalmente mulheres. A concorrência estava acirrada na cidade, famosa por ter muito mais mulheres do que homens. Frida entrou, pediu uma mesa para três pessoas. Era um truque antigo que ela utilizava quando saía sozinha para jantar. Caso contrário, se falasse que estava só, a mesa que lhe dariam seria bem pequena, geralmente encostada em uma pilastra ou escondida de todo mundo, perto de uma passagem para os banheiros ou para a cozinha. Qualquer questionamento depois de sentada, diria que recebeu uma mensagem de que as pessoas que a acompanhariam tiveram um imprevisto e não mais poderiam ir. Júlia era o nome da recepcionista do bar que a levou até a mesa. Estava em local bem posicionado, com ampla visão para todo o salão, além de poder ver quem chegava ou saía do bar. De onde estava, conseguia ver todos os garçons. Nenhum era um deus grego como Elaine lhe falou. Pediu um drinque com uísque, angustura, soda, gelo e ginger ale, além de uma porção de pastéis fritos com um inusitado recheio de atum com ervilha. Logo se deixou levar por seus pensamentos novamente, sem prestar atenção no que acontecia a sua volta. Somente voltou para a cena do bar quando um casal chegou para ficar na mesa ao lado da sua. Era sua vizinha mineira acompanhada por um bem vestido homem. Parecia que os dois já eram fregueses do bar, mesmo com tão pouco tempo de funcionamento, pois o garçom lhes perguntou se beberiam o de sempre. Aumentaram levemente o volume do som. Tocava Drive My Car, música dos Beatles. Frida esboçou um sorriso, pois era a banda que mais gostava. Alguns amigos lhe diziam que ela era mais velha de cabeça do que a sua idade real, já que gostava de Beatles e de Chico Buarque, embora tivesse nascido muito depois do auge do sucesso de ambos. Na verdade, quando ela nasceu, os Beatles já tinham se separado. O garçom voltou com os drinques da mesa ao lado, cochichando no ouvido do homem. Ele se levantou e pediu licença para a mulher que o acompanhava, pois precisava resolver um problema na entrada do bar. A vizinha puxou conversa com Frida. Assim, descobriu que o tal homem era Antônio, o dono do bar e que alguém estava querendo entrar de qualquer forma naquele momento, mesmo sabendo que o bar estava lotado. Frida imaginou a cena do lado de fora. Estava sozinha em uma mesa que cabiam quatro. Porque não convidar o encrenqueiro para sua mesa. Ela queria adrenalina e aquela poderia ser uma ótima oportunidade. Pediu para a sua vizinha vigiar a mesa, pegou sua bolsa e se dirigiu à portaria. Para sua surpresa, a pessoa que queria entrar de qualquer forma era Kellington. Os olhos de ambos se cruzaram. Novamente seu coração veio à boca. Ele sorriu, vindo em sua direção. Fitou seus olhos bem no fundo, abrindo os braços para abraçá-la. Frida não esboçou nenhuma reação. Ele se aproximou mais e no momento em que iria envolvê-la em seus braços, Frida deu dois passos para trás. Virou-lhe as costas, voltando para sua mesa. Kellington pertencia ao passado. Queria viver aquele presente. A vontade de aventura passou. Acabou de beber o drinque e pediu a conta. Olhava para o infinito quando um garçom alto lhe entregou a nota. Ela ficou hipnotizada com a estampa do rapaz. Era o deus grego que lhe falaram. Sacou seu cartão de crédito, entregando-o para o garçom sem tirar os olhos de seu rosto. Digitou a senha, perguntando se era possível lhe trazer uma garrafa de água mineral, pois uma repentina sede secara sua boca. Muito educado, o garçom respondeu afirmativamente, perguntando-lhe se desejava mais alguma coisa. Sem nenhuma inibição, Frida respondeu imediatamente: VOCÊ! Seu coração veio à boca pela terceira vez no mesmo dia. Já virara especialista.

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