Pesquisar este blog

domingo, 20 de abril de 2014

ROSA

para LH

Henrique Luís comanda cerca de três mil pessoas no país. O rapaz é novo na repartição, mas alçou voos que muitos almejaram alcançar com muito mais tempo de casa do que ele e não chegaram nem perto. Méritos próprios. Sua mãe, toda coruja, até fez um comentário em uma foto por ele postada quando assumiu seu novo posto: "Este é o meu garoto! Vai longe este guri!" Em determinados dias HL, como é chamado pelos colegas mais próximos do trabalho, tem vontade de largar tudo e viver pacatamente em sua fazenda localizada no interior de Goiás. Quis o destino que ele largasse uma promissora carreira de veterinário no Canadá para entrar naquela repartição pública. Ao ler as pendências daquela sexta-feira, verificou que era chegada a hora da troca das credenciais de todos os colegas de trabalho, pois a atual vence no final do ano. Os trâmites burocráticos exigem uma antecedência de meses para que as novas credenciais fiquem prontas antes de expirar a validade das atuais. Definida a empresa para a confecção destas credenciais, chegou a hora de definir a cor. Tarefa fácil, pensou HL. O atual cartão de identificação é verde. Repetir a cor não era aconselhável e nunca tinha acontecido. Desde que elementos de segurança foram introduzidos no cartão, as cores verde, azul, vermelho, marrom e bonina já tinham sido usadas. Com o modelo atual nas mãos, ele ficou visualizando qual seria a melhor cor para a nova versão. Chamou Danette, sua assessora, consultando-a. Sem pensar, ela soltou: "rosa". Ele devolveu uma sonora gargalhada. Desligou o computador, fechou suas coisas e desejou bom final de semana para a assessora. Segunda-feira ele decidiria. Ao sair do prédio, notou uma movimentação intensa de gruas, caminhões e gente. Perguntou ao segurança o que era aquilo, recebendo a resposta de que o prédio seria adesivado no final de semana para uma campanha institucional da repartição. O que será desta vez?, pensou, lembrando das campanhas anteriores, com adesivos berrantes nas janelas de todos os andares. Entrou no carro, deu a partida e foi para casa. Morava no mesmo prédio onde sua namorada tinha um apartamento. Tinham uma festa para ir naquela noite. Como era uma festa de criança, tinham que sair mais cedo. Passou em casa, onde só teve tempo para uma rápida ducha, trocou de roupa e subiu um andar, batendo campainha na porta de Amanda. Ao abrir a porta, HL teve uma surpresa. Amanda estava vestida de rosa da cabeça aos pés, o que lhe provocou uma gargalhada, fazendo Amanda fechar a cara. HL teve que explicar o caso da credencial. Foram para a festa. A decoração do salão era toda em tons de rosa, desde o mais claro até o famoso rosa choque. Afinal, a aniversariante, que fazia seis anos, adorava a Barbie. HL então notou que todas as mulheres, não importando a idade, estavam com roupas da cor rosa. Que perseguição! Para piorar, parecia que a ditadura do rosa tinha se instalado, pois os doces eram glaceados de rosa e o bolo tinha uma camada de massa rosa. Começou a ficar irritado com aquilo. Amanda percebeu a cara de poucos amigos e o chamou para ir embora. HL aceitou sem pestanejar. De volta ao carro, ligou o som. O refrão de um sucesso de Rita Lee da década de oitenta se fez ouvir: "por isso não provoque, é cor de rosa choque, não provoque..." Ele desligou o rádio. Não quis saber de conversa o resto da noite. Na manhã de sábado, abriu as cortinas de sua janela, mirando o lago e o rebanho de pacas que insistia em passear por aquelas bandas todas os dias. Resolveu colocar um dvd de Chitãozinho e Xororó, mas não o encontrou. Ligou o rádio na Band News e ouviu o locutor dizer que apresentariam, logo após o intervalo, uma entrevista exclusiva com Alinne Rosa, contando tudo sobre sua saída da Banda Cheiro de Amor e a carreira solo. HL desligou o aparelho. Era melhor ir malhar na academia do prédio. Naquele horário era tranquilo, quase nunca tinha gente. Amanda não quis acompanhá-lo. Quando estava na esteira, ligaram o monitor de vídeo. Colocaram um show da Pink para animar os poucos que ali estavam. HL desistiu. Ao voltar para seu apartamento, passando pelo corredor que dá acesso a ele, em todas as portas tinham cartazes na cor rosa, com a hashtag #queremosrosa. Aquilo era uma brincadeira de mau gosto. Amanda tinha saído, deixando um recado escrito em um post-it rosa. Ele decidiu ir para casa de sua mãe. Lá nada era rosa. Quando entrou na sala do apartamento onde sua mãe morava, um perfume de rosas dominava o ambiente. Um grande arranjo de rosas na cor rosa enfeitava o centro da mesa. Sua mãe estava na cozinha preparando a sobremesa do almoço. Doce de manga rosa. HL não sabia mais o que fazer. Tomou dois comprimidos de Tylenol PM e logo capotou, só acordando no domingo. Foi checar seus e-mails e duzentas mensagens apitaram em seu celular. Todas tinham a mesma frase: queremos rosa! Realmente as coisas começaram a ficar desesperadoras. Saiu para correr no parque. Quaresmeiras floridas que sempre estavam naquele parque, e quase nunca lhe chamaram a atenção, agora lhe provocavam com suas flores intensamente rosas. Quis que a segunda-feira chegasse logo. E ela chegou. Ao estacionar o carro, custou a acreditar no que estava vendo. Fechou os olhos e os abriu novamente para se certificar de que não estava sonhando. Era verdade. O prédio da repartição estava todo adesivado de rosa. Que campanha era aquela? Não podia ser o tal outubro rosa, pois para aquele mês ainda faltava muito. Entrou sem dar sequer um bom dia para os porteiros, algo que fazia todos os dias. Como se estivesse cego, não viu mais nada até chegar em sua sala, onde o quadro de avisos exibia apenas uma reluzente palavra: ROSA. Que campanha era aquela? Chamou Danette, mas ela ainda não havia chegado. Pediu à sua secretária um copo de água, mas exigiu que fosse servido em um copo de vidro transparente. Não queria mais nenhum objeto rosa em sua frente. As pessoas começaram a chegar. Parecia que todos tinham combinado. Homens e mulheres usavam pelo menos uma peça na cor que ele passara a odiar nos três últimos dias. Carminha entrou em sua sala toda alegre para dizer que tinha ganhado de seu namorado a coleção completa do desenho animado da pantera cor de rosa. Ele cuspiu marimbondos, assustando Carminha, que saiu correndo da frente de HL. Baixou a cabeça, fechou os olhos e respirou fundo. Meditou, pedindo um sinal para ele definir a cor da credencial. Foi interrompido por sua secretária dizendo que alguém tinha mandado entregar um vaso de gérberas. Ela queria saber onde colocar. Apostando que eram flores rosas, HL disse que era para colocar bem longe dele. A secretária insistiu, dizendo que eram lindas e tinham uma cor muito viva. Em tom jocoso, HL disse: aposto que a cor viva é rosa choque! Ela entrou com o vaso. As flores tinham a cor laranja. Era o sinal que acabara de pedir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário