Para Carol
Uma batida na porta foi o
bastante para Clara acordar. Ainda estava escuro e fazia muito frio. A noite de
sono tinha sido tão reconfortante que ao abrir os olhos e se deparar com um
crucifixo na parede em frente à cama em que dormia, assustou, pois era
agnóstica. Mas logo se deu conta de onde estava.
Era na Casa dos Peregrinos Dom
Silvério, na Serra da Piedade, em Caeté.
Hora de se levantar para as
atividades do dia. Cinco horas da manhã. Nova batida na porta. Com o cobertor
enrolado no corpo, ela abriu a porta e lhe entregaram um copo com três dedos de
limão espremido. Tinha que beber antes mesmo de escovar os dentes, fazendo um
grande bochecho com água fria para não prejudicar o esmalte de seus dentes.
Esta e outras orientações constavam do folheto que recebera ainda no ônibus, na
saída da rodoviária de Belo Horizonte.
Clara gostava de viver alternativamente.
Já tinha seguido o movimento Hare Krishna quando estudava Direito na UFMG,
depois entrou para a Seicho No Ie, largou tudo, virou vegana, leu tudo sobre o
auge dos hippies no Brasil, chegando a visitar uma aldeia remanescente da
comunidade em Arembepe no litoral baiano. Agora, ela não acreditava em nada,
mas gostava de meditação e a ioga lhe proporcionava bons momentos de encontro
consigo mesma.
Ao entrar em um ônibus em BH, se sentou em frente ao famoso
Jornal do Ônibus. Neste jornal, com informativos de interesse da população,
estava pregado um cartão, provavelmente deixado por alguém, com o formato de um
passarinho verde. O cartão lhe chamou a atenção. E ficou com uma enorme curiosidade
quando viu que no corpo do pássaro tinha um telefone celular e a seguinte
frase: venha entrar em contato com o cosmos.
Nem pensou duas vezes, ligou,
pegou as informações, especialmente local, data e valor. A atendente insistiu
em explicar que não se tratava de um curso, mas de uma experiência
transcendental. Clara pegou todos os dados para fazer o pagamento, o que fez
pelo próprio celular.
Em dia e horário indicado, estava na Rodoviária de Belo
Horizonte, de onde o ônibus com seus colegas de experiência partiu para a Serra
da Piedade. No ônibus, ela pegou o folheto com as orientações e dormiu, pois
estava muito cansada. A viagem é curta, distante apenas 48 quilômetros da
capital mineira. Eram vinte e seis pessoas ao todo. Cada um ficou em quarto
individual.
Naquela época não existia peregrinação para o Santuário Nossa
Senhora da Piedade, motivo pelo qual a pousada estava liberada para aquela
experiência cósmica.
Clara tomou o suco de limão puro fazendo muita careta.
Não escovou os dentes, apenas fez um longo bochecho. Em seguida, tomou um
banho muito frio, pois o chuveiro elétrico tinha sido desligado para
potencializar a experiência. Ao sair do quarto, o silêncio reinava. A meditação
já tinha começado.
Nenhum barulho se fez ouvir no refeitório, onde estavam
todos para a primeira refeição do dia. Apenas um copo de leite de amêndoas. Clara
sorveu o líquido ralo e esbranquiçado com um certo temor de ficar com fome mais
tarde.
Um jovem apareceu com uma placa indicando a direção que deveriam seguir.
Foram para a beira de um precipício.
O dia amanhecia. O visual era
deslumbrante. Tonalidades de azul tomavam conta do céu, que estava repleto de
nuvens. A luz do dia ainda era fraca, o que dava à vegetação uma cor também
azul. Ali todos se sentaram, abriram a boca, colocando suas línguas para fora.
Sempre de olhos fechados. Era o banho de sol na língua, prática comum dos higienistas.
Cinco minutos bastavam para matar os germes. Clara achou aquilo engraçado.
Queria falar, mas as regras eram claras. Nada de conversas, apenas meditação
coletiva.
Quando ouviram o estalar de dedos, fecharam a boca. Um leve gosto de
queimado tomou conta do palato. De olhos abertos, fixaram o horizonte e se
deixaram levar pelos pensamentos. Clara não sabia em que pensar. Deixou a mente
fluir e nada vinha. Sem relógio no pulso, nem celular, era difícil saber quanto
tempo estava ali sentada, mirando o nada. Sim, ela mirava o nada, pois de tanto
fixar o horizonte, nada mais via. O silêncio foi quebrado por um coro de vozes
femininas. Era um coro distante, mas ouvia-se perfeitamente que eram
desafinadas. Clara percebeu que a música lhe era familiar. Quando cantaram o
refrão, não teve dúvidas. As mulheres cantavam Jesus Cristo, sucesso antigo de
Roberto Carlos. Ela sentiu uma vontade enorme de cantar também, mas foi firme.
Fixou mais ainda o nada. Alguém do grupo cantou. Outro o seguiu no refrão. Quebraram
a regra. Foram retirados dali. Sobraram vinte e quatro. Como eram rígidos os tutores
do grupo. A música cessou.
Uma senhora chegou com um galão e serviu suco de
tamarindo para todos do grupo. Alimentariam de líquidos? Isto não estava no
folheto com as orientações. Assim que todos terminaram de beber, nova
tabuleta. Desta vez a orientação era para formarem duplas e se abraçarem.
Clara abraçou um homem de uns quarenta anos que estava ao seu lado. O abraço
tinha que ser forte. Ficaram juntos, corpo no corpo. Um calor interno subia
pelo corpo de Clara. Ela queria se desgrudar do homem, mas tinha medo de ser
retirada daquela experiência. Uma eternidade se passou. Ninguém desobedeceu às
regras. Hora de voltar a ficar só. Novamente sentados. Novamente olhando
para o horizonte. A esta altura, o sol já tinha vencido as nuvens e iluminava a
vegetação, cujo verde dominava a paisagem.
Clara ainda tinha dificuldades em
mirar o nada. Um oco no estômago. Era a fome. E, como por encanto, uma nova placa
indicando almoço. Foram para o refeitório. Uma pessoa espirrou. Três disseram
amém. Mais três fora da experiência com o cosmos. Uma variedade de alimentos
crus estava em um aparador. Cada um podia se servir à vontade, mas apenas uma
vez. Clara colocou somente folhas e brotos de cereais em seu prato. Sentou-se
na cabeceira da mesa comunitária. Todos se sentaram na mesma mesa. O silêncio
era tanto que o mastigar dos presentes era ouvido. Um ritmo interessante.
Alguns mais rápidos, outros de forma vagarosa. Todos absortos na alimentação e
em pensamentos. Clara só pensava em quantos ainda restariam ao final do dia,
quando a experiência se completaria.
Após o almoço, todo mundo teve que se
sentar em redes, levantar a blusa, deixando a barriga de fora. Na altura do
umbigo, colocaram uma toalha molhada em água gelada. Em quinze minutos, a
toalha estava seca. Nas orientações estava escrito que aquilo facilitava a
digestão. Clara pensou que qualquer coisa facilitaria a digestão daquele
almoço. Em seguida, todos foram para seus respectivos quartos, que estavam
completamente fechados, sem nenhuma nesga de luz. Clara se deitou, mas não
tinha sono. Uma música instrumental suave e um aroma de flores silvestres
invadiu o ambiente. Novo mergulho em pensamentos. Clara, enfim, conseguiu
pensar em algo. Pensava em seu gosto musical. Muito rock, especialmente de Guns
N’ Roses. Pensou tanto que achou que tinham mudado o tipo de música, pois poderria jurar, caso acreditasse em juras, que o som que ouvia era a voz de Axl Rose. Estaria
delirando?
Uma batida na porta indicou que era hora de sair novamente do
quarto. O frio da manhã tinha ido embora, deixando em seu lugar um calor
gostoso. Todos foram para a beira de um tanque do tamanho de uma piscina
semiolímpica. Um forte aroma de mel se fez sentir. Quando Clara olhou para
dentro do tanque, viu um enxame de abelhas. Uma placa indicou que eles deveriam
se despir e entrar no tanque. Nove pessoas se recusaram, pois tinham medo de
picadas de abelha. Clara continuava firme e forte. Sem pudor, tirou sua roupa e
deixou o frescor da brisa envolver seu corpo. Entrou bem devagar no tanque com
o auxílio de uma escada. O contato com o mel foi esquisito. Aquele líquido
viscoso, as abelhas pousando em seu corpo. Ela fechou os olhos e se deixou
levar. Quando deu por si, estava sentada, cabelos grudados, mas feliz. Não
percebeu que mais quatro pessoas tinham sido retiradas da experiência. Restavam
oito pessoas. Para Clara, a experiência no tanque de mel durou horas. Mas foram
apenas quinze minutos. Quando saiu, um homem jogava um forte jato de água
gelada no corpo de cada um, retirando rapidamente o mel que estava agarrado.
Clara recebeu uma toalha, enxugou, vestiu sua roupa e foi para a direção
indicada. Era uma gruta, onde se sentou, tomou um outro copo de suco de
tamarindo e mirou a escuridão do local. Ali ficou até o final do dia. Viajou em
pensamentos, em ideias, fazendo um balanço de sua vida até ali. Quando a
chamaram, não tinha mais ninguém com ela. Uma mulher lhe abraçou,
parabenizando-a pela conquista. Tinha conseguido chegar ao final do dia sem
quebrar as regras. Era hora de vivenciar o cosmos. Duas pessoas se encarregaram
de despi-la, lavá-la com água perfumada, enxugá-la, vestindo-a novamente, desta
feita com uma túnica azul. Clara foi conduzida para uma cabana dominada também
pela cor azul. Deitaram-na em uma esteira e saíram. Ela ficou ali, estática.
Uma voz feminina pediu para ela imaginar uma luz azul envolver o seu corpo.
Clara começou a rir por dentro, sem emitir sons. Já tinha tido aquela
experiência anos atrás. A voz continuou suavemente a falar em azul, em azul, em
azul. Clara sentiu um formigar pelo corpo, uma dor intensa nas juntas, até não
aguentar mais e desmaiar. Quando acordou, tudo era vermelho em sua volta, até a
túnica que usava. Um enorme ovo ornava o ambiente. Uma voz ríspida ordenou que
ela acordasse. Não via ninguém, apenas uma fumaça do tipo de gelo seco. Uma ventania. O vermelho virou amarelo e, em seguida, virou
verde. Um pássaro verde entrou no ambiente onde Clara estava. Era o mesmo
pássaro do cartão que ela pegara no ônibus em BH. O passarinho voou ao redor
dela e pousou em seu braço. Abriu o bico, mas nenhum som se ouviu. Ele mirou o
ovo, levantou voo e se chocou violentamente contra aquele grande ovo, que se
partiu em milhares de pedaços, deixando seu líquido tomar conta de todo o ambiente.
Clara e clara se tornaram uma única matéria. A experiência cósmica se
completara.
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