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domingo, 6 de julho de 2014

SONS DA NOITE

Para Maíra

Depois de sofrer morando em um albergue em Genebra, onde o banheiro era coletivo e se ouvia absolutamente tudo o que seu vizinho de quarto fazia, Janaína, enfim, se mudou para Berlim, onde terminaria seu curso. Sua maior vontade era retornar para o Brasil, mas ainda faltavam alguns meses de dedicação à sua especialização em direitos humanos. A vida não era fácil, pois sua família e amigos estavam longe. Para amenizar a solidão, um namorado alemão. Mas não se encontravam sempre, pois ele morava em outra cidade, mais ao norte do país. Com a mudança para Berlim, ficariam mais próximos, com mais possibilidades de passarem os finais de semana juntos. Janaína resolveu dividir um quarto com uma colega de curso, uma belga, Marjorie. Mas a convivência em um mês mostrou que seria impossível dividirem o mesmo teto. Marjorie era bisbilhoteira, gostava de mexer nas coisas de Janaína. Revirava a bolsa, as gavetas, os bolsos das calças. E quando Janaína entrava em casa, ela sempre estava sentada no sofá, esperando-a chegar, com olhos arregalados, com olhar perdido no horizonte. Sempre dizia a mesma frase: "demorou para chegar, estava preocupada". Em dez dias morando juntas, Janaína se sentia sufocada pela belga, que a cobria de perguntas, mostrava objetos retirados de sua bolsa e os sacudia no ar, questionando o que significava aquilo. Eram coisas como chaveiros, porta comprimidos, bilhetinhos do namorado. Invasão de privacidade. Para piorar, Marjorie gostava de pegar blusas e meias "emprestadas" de Janaína. Era hora de encarar um local sozinha. Procurou bastante até decidir por um pequeno apartamento nos arredores de Berlim, um quarto e sala. No prédio, a maioria dos moradores era estudante. Para a limpeza semanal dos apartamentos, o condomínio tinha uma empregada antiga, Herta. Ela conhecia todo mundo, seus hábitos, suas preferências, suas manias. Isto sem nunca ter trocado mais que meia dúzia de frases com os moradores. Seu conhecimento vinha da observação dos objetos encontrados nos apartamentos, na decoração, no modo de guardar as coisas, nas roupas e acessórios. Quando Janaína alugou, avisaram que Herta tinha a chave de todos os apartamentos, assim como o zelador do prédio e o dono do imóvel, motivo pelo qual ela não poderia trocar as chaves sem antes avisar. O dia da limpeza era da alçada da empregada, mas garantiram que ela nunca falhara. Sua visita aos apartamentos era semanal. A limpeza não incluía lavar e passar a roupa. Janaína escolheu um apartamento mobiliado, pois não queria ter trabalho de comprar móveis e eletrodomésticos. Afinal, só ficaria ali por mais cinco meses. Quando conheceu o apartamento, sua preocupação maior era com a claridade no quarto, pois tinha dificuldades de dormir em ambientes iluminados, não importava em que intensidade. Percebeu que as persianas não garantiriam uma escuridão total no quarto. Encomendou um blackout. Só se mudou quando o quarto estava imerso no breu. Chegou, enfim, o dia de dormir pela primeira vez naquele apartamento. Depois que acabaram as atividades na escola, resolveu passar em uma lanchonete com alguns colegas de escola. Ligou para seu namorado, combinando um final de semana em Berlim. Quando colocou a chave na fechadura da porta de entrada, única porta de acesso ao apartamento, o relógio já apontava mais de onze horas da noite. Estava com muito sono. Tirou a roupa, escovou os dentes e tomou um banho. Colocou seu pijama de flanela, ideal para aquelas noites frias que anunciavam um inverno rigoroso. Borrifou um delicado perfume no pescoço e deitou. As luzes do quarto estavam apagadas, mas a luminária no criado mudo do lado direito da cama ficou acesa. Ela leu um pouco um texto em alemão que seu orientador de tese lhe dera para estudar. Duas páginas e o sono chegou. Apagou a luz. A escuridão se fez. Mesmo assim, ela colocou uma máscara de dormir. Pousou a cabeça no travesseiro e se entregou ao deus do sono. Uma freada brusca, uma batida seca, um grito de socorro ecoaram no ar. Parecia muito perto, mas seu apartamento era de fundos, dando para um jardim bem cuidado, longe da rua. Nem adiantava tentar ver alguma coisa pela janela. Resolveu ficar onde estava, deitada. Ouviu um choro. Correria, gente falando alto. Ela continuou na cama, imóvel, mas perdeu o sono. Mil pensamentos do que poderia ter acontecido. Será que tinha alguém ferido, alguém morrera? Enfim, uma sirene de ambulância. Mas quem poderia afirmar que era uma ambulância? Poderia ser o carro de bombeiros ou mesmo a polícia. Um alarido continuava forte no ar. Ela não distinguia o que conversavam, mas sabia, pelo tom utilizado, que era preocupante. Não sabe quanto tempo durou, mas tudo voltou ao silêncio depois que uma sirene tocou novamente. Um barulho constante, mas que foi diminuindo até desaparecer. Janaína mexeu na cama. Virou de um lado para o outro, mas seu sono já tinha galopado para o além. Era hora de contar carneirinhos. Ficou a imaginar carneiros coloridos pulando uma cerca. Mas que bobagem, pensou. Carneiros não pulam cercas. Ou pulam? Registrou que precisava satisfazer aquela curiosidade tão logo se levantasse. Iria consultar o oráculo maior da atualidade, o Google. Um choro cortou o ar. Era um bebê. Logo ela mudou de ideia, pois um gato miou alto. Gatos imitam bebês quando novinhos.  Outro gato. Era uma briga de felinos. Alguma gata no cio. Aqueles sons noturnos estavam deixando Janaína incomodada. Novo ruído se fez ouvir. Era um barulho de salto batendo no chão, em piso de madeira. Seria a vizinha andando pelo apartamento de cima? Janaína tirou a máscara, acendeu uma luz, pegou sua bolsa, pois lembrara que ela tinha um protetor de ouvido que ganhara em um voo internacional. Revistou toda a bolsa e nada encontrou. Será que Marjorie tinha pegado os protetores auriculares? Ao mexer na bolsa, achou estranho que um chaveiro diferente estava lá dentro. Tinha o formato de um peixe estilizado. Marjorie era vidrada em peixes. O que o chaveiro de Marjorie fazia dentro de sua bolsa? Enquanto procurava seu protetor de ouvido, Janaína percebeu que os barulhos não mais existiam. Voltou para a cama, na mesma escuridão, com a mesma máscara e sem os protetores auriculares. O silêncio reinou até que um novo ruído invadiu o ar. Era uma máquina. Era a casa de máquinas do elevador do prédio. Seu apartamento ficava no quinto e último andar, bem próximo à casa de máquinas. Alguém precisava do elevador para subir ou para descer. Ela não tinha ouvido nada antes, mas com o silêncio total, e um ouvido apurado, aquele som se fez ouvir e a incomodou. Não conseguia dormir. Era hora de apelar para um remedinho. Pegou o frasco que ficava sempre à mão, não importava onde fosse dormir. Uma melatonina sublingual. Sempre foi tiro e queda. Sabor chocolate debaixo de sua língua. Rapidamente, Janaína entrou naquele estado que não se sabe se está acordado ou se já dorme. Os sons continuaram, mas não mais a incomodavam. Estava relaxada. Sorria sem motivos. Novamente a casa de máquinas deu sinal de vida. O elevador se movia. Janaína enxergava luzes coloridas, mas o quarto permanecia no escuro absoluto. Estava sonhando? O som do elevador foi ficando mais e mais perto. Até que ele parou. Era no seu andar. O ranger da porta do elevador se fez ouvir, já que era antigo e precisava de um lubrificante em suas estruturas de metal. Passos andando no corredor. Passos que se aproximavam do apartamento de Janaína. Ela começou a suar frio, mas estava paralisada na sua cama. Os passos eram mais nítidos. Toques secos no chão. Alguém que usava sapato com sola de borracha. A pessoa parou de andar. Janaína ouviu o tilintar de chaves. Este ruído estava bem próximo. As chaves caíram no chão. A pessoa praguejou. Tossiu. Voz rouca. Não deu para identificar se era homem ou mulher. Novo tilintar de chaves. Barulho de chave entrando no tambor da fechadura da porta. Janaína suava cada vez mais frio. O lençol estava encharcado. E não era qualquer porta. Era a porta de seu apartamento. Janaína ficou petrificada. Ela ouviu o rodar da chave na fechadura, a porta se abrindo, os passos que ouvira do lado de fora agora estavam em sua sala. A porta se fechou. A chave entrou no tambor novamente. Ouviu o seu girar na fechadura. Não ouviu mais nada. 

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