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segunda-feira, 14 de julho de 2014

UM TESTE, UMA VIAGEM

para Luena

Estava atrasada e não conseguia achar uma vaga no estacionamento em frente à clínica. Já tinha dado três voltas e nada.
Pegou o celular para avisar que estava em frente ao prédio, mas ainda sem conseguir parar seu carro, quando um senhor com semblante fechado caminhou em sua direção. Ele fez cara de poucos amigos, olhou bem no fundo dos olhos dela e apontou para um carro preto. Ele não conseguiria sair se ela continuasse parada onde estava.
Lu sorriu para o senhor, colocou a primeira marcha e puxou o carro para frente, ligando a seta para mostrar seu interesse em estacionar exatamente na vaga do sedan preto.
O senhor continuou com a cara fechada, entrou em seu veículo, deu a partida e saiu, sem nem mesmo fazer um aceno de cabeça em sinal de agradecimento. Quando Lu engatou a ré, viu um carro entrando na vaga. Ela buzinou, gritou, mas a motorista nem ligou. Acabou de parar seu carro, pegou uma bolsa enorme, ajeitou os óculos escuros no rosto, deu uma balançada na cabeça para arrumar o cabelo, olhou para Lu, beijou o ombro e saiu a rebolar.
Lu ficou furiosa. Sua vontade era de pegar aquela mulher e guilhotiná-la, no melhor estilo francês.
Assim que a ladra de vaga sumiu do seu alcance visual, Lu saiu de seu carro, abriu a bolsa, procurando alguma peça pontiaguda. Achou uma pinça. Servia. Foi até o carro da mulher, abaixou perto de um pneu, tirou a tampa da sua válvula e usou a pinça para esvaziá-lo. Não se importou se alguém a via fazendo aquilo. Até achava bom se isto acontecesse. O ato de esvaziar o pneu fez tão bem a ela que resolveu repetir o procedimento em todos os outros pneus do carro.
Sorrindo, voltou para seu carro e deu mais uma volta. Desta vez com sucesso. Duas vagas ao fundo do estacionamento a aguardavam. Escolheu a que era mais fácil para entrar, estacionando perfeitamente. Ao sair do carro, repetiu, de forma instintiva, os mesmos gestos da mulher ladra de vaga. Arrumou os óculos no rosto, deu uma sacudida no cabelo e beijou o ombro. Quem viu, nada entendeu. Entrou no prédio da clínica com uma sensação de leveza inacreditável.
Na portaria, teve que se identificar, posou para uma foto digital e recebeu uma senha para digitar na catraca antes de alcançar os elevadores. Claro que Lu reclamou da senha, afirmando, em tom enérgico, que o mundo estava sendo dominado por senhas e que ela não mais lembrava de nenhuma. Tinha um aplicativo no seu smartphone que tinha a função única de guardar senhas. Para acessá-lo, uma senha era necessária. Mas era a única que memorizava. A senha que acabara de receber era a centésima oitava que entrava em sua lista.
Os seis números foram digitados. O painel da catraca indicou que ela podia passar. Eram oito elevadores modernos. O andar devia ser apertado do lado de fora. Dentro do elevador nenhum painel, apenas um botão para ser usado em caso de emergência. Décimo quarto andar. Era o piso onde ficava a clínica ortomolecular onde tinha um horário marcado para fazer um teste de intolerância alimentar.
Nova recepção, nova identificação. O convênio não cobria. Pagamento antecipado: R$ 490,00. Ao perguntar se aceitavam cartão, obteve a resposta que somente de débito. Fez o pagamento e pediu recibo.
A recepcionista, na maior cara de pau, disse que com recibo tinha que acrescentar R$ 50,00 no preço. Lu ficou furiosa, ameaçou ligar dali mesmo para a fiscalização de tributos. Chegou a pegar seu telefone para isto, mas não foi preciso. A recepcionista disse que faria uma concessão. Não cobraria a taxa extra, mas emitiria o recibo.
Ela disse que o teste estava atrasado, com duas pessoas na frente de Lu, mostrando onde ela deveria esperar. Na salinha indicada, um homem triste, com roupa em tons sombrios, e a mulher ladra de vaga. Lu olhou para ela e sorriu. Um sorriso leve, discreto, nem de longe a gargalhada sonora que passava em sua cabeça. Logo o homem triste entrou na sala do teste. As duas ficaram sós, olhando uma para a outra. Lu pegou uma revista Caras. Excelente oportunidade para ver fotos de famosos e outros não tão famosos assim. Na verdade, ela não conseguia distinguir quem era quem, sendo necessária a leitura das pequenas legendas. Mesmo assim, continuava sem saber quem eram aquelas pessoas que ilustravam a revista semanal.
O homem triste saiu do teste mais triste ainda. Sem dar uma palavra, olhava para o chão e assim seguiu até sair da sala.
Chamaram Andressa. Era a mulher que lhe roubara a vaga do carro. Ela entrou, mas logo saiu. Não era o teste que ela tinha marcado.
Chegara a vez de Lu. Assim que entrou, foi acomodada em uma cadeira do tipo que os dentistas utilizam. Entrou, então, a mulher que aplicaria o teste. Era pálida, com cara amassada, olhar profundo, cabelo liso, como de uma índia, mas com uma enorme mecha branca. Na orelha esquerda, uma pena rosa servia de brinco. Tinha as mãos trêmulas. A mulher balbuciou qualquer coisa, mas era impossível entendê-la. Lu viu o crachá, no qual estava escrito Glenda.
Recebeu um formulário para preencher. Pedia informações de possíveis reações alérgicas ao longo da vida, se era fumante, se bebia, se praticava alguma atividade física, se tomava remédio de uso contínuo, se tinha sido submetida a alguma intervenção cirúrgica, e coisas do gênero. Lu preencheu a ficha e a entregou de volta para Glenda, que continuava a falar palavras ininteligíveis.
Glenda se aproximou da cadeira e suas mãos trêmulas foram empostadas junto ao umbigo de Lu. A mulher entrou em transe. Que teste é este? Era a pergunta que Lu não parava de fazer, mas não obtinha resposta. Glenda revirava os olhos, as mãos ficando mais e mais trêmulas. Uma haste de cobre começou a rodar por cima da cadeira. Havia um pêndulo na ponta da haste. Lu ficou com medo daquele pêndulo cair em sua cabeça. Lu não conseguia se mexer. O corpo estava inerte na cadeira, mas a mente estava em alta atividade. Os olhos fixavam o pêndulo, mesmo sem querer fazê-lo. As mãos de Glenda percorriam todo o corpo de Lu, sem contudo tocá-lo. Seus pensamentos começaram a ficar confusos. Sua mente a levava para outro lugar. Local familiar, local há pouco visitado. Era o estacionamento em frente ao prédio onde ficava a clínica. Viu seu carro perfeitamente estacionado. Viu a ladra de vaga explodir de raiva ao ver os quatro pneus esvaziados. Ela gritava ao telefone com alguém, dizendo que estava atrasada e uma cadela tinha feito aquilo com o carro dela. Lu riu muito. Riu alto. Gargalhou. Glenda aumentou a velocidade de suas mãos pelo corpo inerte da sua paciente e Lu voou dali, alçou alturas inimagináveis. Mas ainda sentia a presença de Glenda, a presença das mãos daquela mulher pálida envolvendo seu corpo.
Um túnel negro, com luzes coloridas aparecendo aqui e acolá. Lu viajava, mas não sabia para onde. Na cadeira, estava imóvel, seu corpo não obedecia aos comandos que vinham da parte do cérebro que não tinha viajado. A outra parte, bem maior, se regojizava ao ver quadros, esculturas, fotografias. Não sabia onde, mas sabia que viajava pela cultura, pela história.
O vestuário que passava à sua frente foi ficando antigo e mais antigo. Não mais via carros, apenas carruagens, cavalos, gente andando a pé por ruas sujas, apertadas, cheia de mendigos pedindo comida. Um rio cortava a vila onde se encontrava. De repente, sua viagem chegava ao fim. Ela se viu em um aglomerado de pessoas que gritavam palavras de ordem. As pessoas estavam eufóricas, como se algo muito importante estivesse por acontecer. Ela vivia a história, era testemunha viva de um acontecimento que mudaria o mundo.
Um menina ficou ao seu lado. Pegou na sua mão. Lu ficou encantada com a garota e lhe perguntou o nome, recebendo uma resposta evasiva:
- Você sabe qual é o meu nome.
Lu insistiu e ela lhe respondeu que se chamava Amanda. A menina lhe olhou ternamente, lhe chamou de mãe e disse: 
- Hoje é 14 de julho de 1789, dia de seu aniversário. A Bastilha está caindo! Você não pertence a este tempo. Ainda vamos nos encontrar novamente um dia.
Lu não viu mais nada. Sua mente voltou a viajar, entrando em modo inacreditavelmente veloz para retornar à sala do teste.
Glenda já não mais tinha as mãos trêmulas. Parecia bem mais amigável. Disse para Lu que o teste tinha sido perfeito. Ela tinha apenas uma intolerância alimentar: cítricos.
Lu tentou falar sobre sua experiência de regressão, mas Glenda saiu da sala. Lu ficara só. Pegou suas coisas e saiu. Olhou no calendário da parede a data. Era 14 de julho de 2014. Dia de seu aniversário. Amanda a esperava em casa para comemorarem juntas. O bolo? Sabor limão.

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