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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

UM DIA APÓS O OUTRO

Hoje recebi de presente esta deliciosa história escrita pela querida amiga Diana. Gostei tanto que compartilho aqui no blog:

Para Leo Soares (Noel)

Murinardo! Acorda, Murinardo!
Outra vez o grito. Todos os dias, exatamente à mesma infame hora, Panerai, com pontualidade suíça, repetia as palavras que faziam Murinardo lembrar. E ele lembrava que queria, mas não lembrava o quê.
Sabia que havia uma necessidade. Lembrava dela assiduamente. Ou melhor, lembrava da existência dela. Não do que ou de quem ela era.
Como era terça feira e tinha mesmo que abrir a porta para Solange – quando Dolly ainda morava em casa ficava livredessa tarefa irritante, mas, agora não havia outro jeito – levantou. Com um pouco de mau humor, um resto de Tylenol PM embaçando os pensamentos, uma leve dor no ombro e um temorzinho de ir ao banheiro e sentir que a litotripsia não tinha sido completamente bem sucedida, destrancou a porta da frente e foi cuidar de sua higiene matinal.
No rosto, apenas água termal, bem fria. Estava proibido pelo dermatologista de utilizar qualquer sabonete ou outro produto de limpeza na pele sensível. Dentes, banho, barba, Musc Nomade. Findo o ritual, o barulho de Solange na cozinha e o aroma de Rosabaya diziam que o desjejum já estava pronto.Suco verde (arrgh! Mas necessário!), omelete de claras e, sim, por favor, café! No último gole o "ping" do telefone. Whatsapp. Vivian e Claudete? A essa hora? "Me bate um abacate", pensou. Bom dia, Muri, querido. Acredita que o carregamento com os vinhos para o jantar da confraria ficou retido na Receita Federal? Vamos ter que adiar para quinta. Pode ser? Nem pensar!!! Na quinta era o jantar com Vicente. Jantar, não. Seria, na verdade, a última ceia. Não agüentava mais aquele convívio; já lhe embrulhava o estômago o visco imaturo e (seria mesmo?) interesseiro. O ardor juvenil já não era máscara competente para esconder a total desnecesidade daquela relação. Um grande "x". Pronto! Já foi! O jantar seria apenas uma delicadeza. Um arremate.
Três ligações no caminho para o trabalho: Pablo, animadíssimo, comunicando o casamento no mesmo dia da abertura de um novo bistrô; Kitty desesperada com alguma decisão estúpida do presidente; Ewenilson para confirmar a viagem para Vanuatu. Meu Deus!! Vanuatu? Minúsculo, um monte de praias (credo!) e nem um restaurante no guia Michelin. Ainda se perguntava o que iria fazer lá; mas sabia a resposta. Viagem com o grupo, para qualquer lugar do mundo, era compulsória. Já antevia as reclamações de Renato com os preços dos jantares, as compras de Robério, o nariz  torcido de Bibiana (que não iria) quando soubesse que Vivian, mais uma vez viajaria com eles e que todos iriam de primeira classe. Divah surtaria. Era simplesmente viciada em viagens e adorava lugares exóticos, mas não tinha uma conta bancária condizente com o vício e, ainda por cima, ia ser avó outra vez e, claro, queria pajear o pimpolho. Pensou em Dolly. Quereria ir? Claro que sequer seria convidado, não poderia arcar com os custos. Uma pontadinha de sei lá o quê parecido com saudade, uma rápida análise do passado e do futuro e...
O outdoor já próximo do trabalho fez lembrar o show de Ellen Oléria. Nelson Laranja faria abertura e Murinardo não perderia por nada! Desviou o caminho e foi comprar os ingressos. Quantos? Giralda adoraria, mas estava na Espanha, Clara, em Paris – e mesmo que não estivesse acabaria desistindo na última hora, Janaína já estaria dormindo (o show começava às 23:00horas), Henrique Luís não sairia de casa a não ser que fosse para um show sertanejo, Frida também circulando na Europa...Geane estava em seu enésimo retiro espiritual achando tudo lindo e maravilhoso.  Comprou dois. Só por precaução.
No trabalho só por volta das dez. Passou pela sala de Riva e Bibiana para marcar o almoço. Contou logo da viagem. Bico automático de Bibiana e sorriso de Mona Lisa de Riva pensando nas taças de champanhe que também tomaria em sua viagem para Vegas, com Alessandro, no carnaval. O ciúme desvelado de Bibiana disparou outra memória. Franziu a testa pensando em como era irritante ter ciúme de Dolly. Não que algum dia tivesse confessado o ciúme. Ao contrário; Murinardo sabia que fazia sucesso, que era "conquistante", tinha vários pretendentes e dispensava outros tantos. Ciúme tinha sido sempre, e ainda era incabível. Ainda assim o sentimentozinho enjoado de "o que poderia ter sido" ameaçava.
Ministros, dignitários, secretários e diretores mais tarde, na sobremesa - uma divina bavaroise de morangos que seguia o levíssimo e delicioso suflê de espinafre, enquanto Bibiana roçava sua perna por baixo da mesa, pensou em mudar radicalmente de vida. Deixaria a cidade, o país; aceitaria uma das propostas de trabalho no exterior, passaria alguns anos fora, respirando e vivendo novas culturas, emoções e pessoas. Não mais os aborrecimentos conhecidos, não mais as mesmas batalhas diárias, não mais a rotina, a repetição. Seria essa a necessidade incômoda e desconhecida?
Pouco antes do final do expediente, uma ligação de Lulu, cheia de saudades. Entre as notícias da família, o anúncio das orações e o envio das bênçãos, Murinardo sorria e pensava na reação da mãe se ouvisse falar na decisão de sair do país. Lulu, muito mais prática ultimamente, encerrou a conversa o dizendo que queria vê-lo mais feliz. Apaixonado e feliz. Murinardo suspirou.
Jantou sozinho no seu restaurante peruano preferido e, às 22:00 horas, já a caminho do teatro, ainda não tinha encontrado destinatário para o ingresso extra que comprara. Seguiu assim mesmo, acostumado, já, a desfrutar sozinho e não deixar passar as boas coisas e oportunidades da vida para as quais nem sempre tinha companhia.
No centro cultural, saindo de uma visita preventiva ao toaleteantes do show, quase esbarra em alguém. Dolly? Não sabia que você gostava de Ellen Oléria! Um sorriso fácil: há muito de mim que você não conhece, Murinardo. Mas, não estou aqui para o show. Na verdade, Dolly viera muito cedo, visitar a exposição de animais à procura de uma cadelinha com pedigree razoável para fazer companhia a Juscelino, o pequeno Shi Tzu de quem tinham "guarda compartilhada". Não encontrara nenhuma e acabara fazendo hora no café. O ingresso extra tinha, enfim, um dono.
Murinardo! Acorda, Murinardo!!
Outra vez o grito. Panerai era constante e incansável. Dolly sorriu. Esse negócio não acaba nunca, né? Todo dia, na mesma hora! 
Murinardo lembrava que queria alguma coisa. Lembrou do dia anterior, das emoções, das quase decisões, dos encontros, das lembranças, das necessidades desconhecidas.
Levantou rápido, abriu a porta para Solange, fez sua higiene pessoal, tomou o desjejum, deu todas as ordens domésticas, olhou para Dolly com um olhar metade Capitu metade de Thundera e pensou: ta boa, canoa!? Fui, despediu-se já na porta.
Dolly suspirou, meneou a cabeça e constatou: você é impossível, Murinardo...
Por cima do ombro Murinardo estalou discretamente a língua em um "tsk": "keep calm", nada como um dia após o outro.

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