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quarta-feira, 27 de agosto de 2014

AUTÓPSIA I E II - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

As montagens de grupos de Brasília que integram a programação do Cena Contemporânea 2014 têm me conquistado, seja pela força da interpretação, seja pela ousadia na encenação. E não foi diferente com o espetáculo que fui conferir na noite de terça-feira, 26 de agosto, no Teatro Dulcina. A peça era Autópsia, dividida em duas partes, Autópsia I e Autópsia II, como peças autônomas, cujos ingressos foram vendidos separadamente. Tinha ingresso para as duas. A primeira parte, mais longa, cerca de noventa minutos, estava marcada para ter início às 19 horas, enquanto a segunda, com uma hora de duração, seria às 21 horas. Como em todas as peças que fui nesta edição, formou-se uma fila de bom tamanho para comprar ingressos de última hora. Na porta do Dulcina, fiquei sabendo que os sem ingresso formavam a Fila Amiga. As portas se abriram quando já passavam de 19 horas. O público foi acomodado em cadeiras dispostas no próprio palco. Seriam poucos em apenas duas fileiras de cadeiras. Sentei-me na primeira fila, em posição central, ao lado do diretor do espetáculo, o sempre competente Jonathan Andrade. Praticamente todo mundo que estava na fila de espera conseguiu entrar. Assim que todos se acomodaram, rolou a gravação do festival e, em seguida, as luzes se apagaram, ficando o teatro mergulhado no breu.
Barulho de passos no tablado e sons de um vento emitidos pelos próprios atores indicavam que eles estavam se posicionando em cena. Quando as luzes se ascenderam, os dez atores estavam completamente nus na frente do público. Cada um se apresentou dizendo nome do personagem, altura e idade (estes dois últimos me parecem ser os dados reais dos atores), além de uma frase chave do personagem que logo representariam. E as idades variavam de vinte e poucos anos a sessenta e cinco anos. Todos ali na nossa frente, nus, preparados para a autópsia, não de seus corpos, mas das vidas de suas personagens.
Autópsia é uma adaptação de textos de Plínio Marcos (autor também encenado em Mundaréu neste mesmo Cena Contemporânea). Assim, os personagens sempre marginalizados do dramaturgo, como desempregados, prostitutas, travestis, cafetinas, gigolôs, menores no mundo do crime, se fazem presentes nas esquetes baseadas em Quando as Máquinas Param; Navalha na Carne; Querô, Uma Reportagem Maldita; Dois Perdidos numa Noite Suja e Abajur Lilás. As três primeiras tem suas adaptações apresentadas na parte I e as duas últimas integram a parte II da peça.
A escolha intérprete/personagem me pareceu algo bem estudado, pois em certos momentos a sensação que se tem é que as personagens foram escritas exatamente para aquele ator ou atriz. E Jonathan Andrade se aproveita muito bem desta sinergia em sua excelente direção. Todos os atores e atrizes em cena tem seu destaque, ninguém suplanta ninguém.
Cada esquete tem vida própria, motivo pelo qual não há nenhum prejuízo para quem consegue assistir somente uma das partes. Se fosse Autópsia I, II, III, IV e seria extramente possível e compreensível. Mas ver as duas partes de uma vez, seguidamente, foi muito bom, pois, embora independentes, as histórias se entrelaçam, possibilitando ao público um melhor dissecar da vida exposta de cada uma das personagens. Temas atuais, sempre presentes nas campanhas políticas que ora vivenciamos, são expostos de maneira crua, real, sem firulas. Desemprego, aborto, dominação, exploração do trabalho alheio, falta de perspectivas na vida, violência, entre outros, são questões que saem das entranhas do tablado para repercutir no público, que reage com risadas, com choro, com inquietação na cadeira, com cara de paisagem. Mas reage!
A violência física e psicológica é muito utilizada nas cinco esquetes. Tinha hora que eu ficava com dó da atriz ou do ator que apanhavam no palco. Os tapas, socos, empurrões e puxões de cabelo eram reais. O barulho dos tapas na cara na esquete de Navalha na Carne eram desconcertantes.
A nudez também é um elemento bastante utilizado em todas as cinco esquetes, mas é nas duas últimas que ela aparece com mais ênfase, ou melhor, de maneira mais provocante e chocante, especialmente em Dois Perdidos numa Noite Suja.
Outro elemento utilizado na encenação é um breve diálogo entre um ator e alguém do público. Neste bate papo, o ator deixa de vivenciar a personagem para abordar algum tema que tenha relação com a cena que acontece no palco. Eu fui um dos escolhidos em Navalha na Carne, quando a atriz que interpreta a prostituta Neusa Sueli me pergunta com quem moro e se eu poderia considerar minha casa como um ninho, um lugar de aconchego.
Enfim, um trabalho visceral, vigoroso, onde os atores não têm medo de serem expostos.
Eles saem de cena e não voltam para receber os aplausos. Quando o público sai do teatro, eles estão do lado de fora, recebendo calorosos apupos e palmas de quem teve o privilégio de assisti-los. Quem passava pelo CONIC, onde fica o Teatro Dulcina, não entendia nada. E, nós, extasiados com o que acabávamos de ver, terminávamos nossa autópsia.
Parabéns ao diretor Jonathan Andrade e ao elenco - Alneiza Faria, Jeferson Alves, Maria Eugênia Félix, Mário Luz, Pedro Ribeiro, Regina Sant'Ana, Ricardo Brunswick, Sami Maia, Sérgio Dhubram e Shevan Lopes. Belíssimo trabalho!

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