Para Diana
A luz do sol entrou pela fresta
da janela atingindo seu rosto. Ela acordou sentindo um calorzinho bom na pele.
Olhou para o lado e seu marido ainda dormia o sono dos justos. Virou-se de lado
para sair melhor da cama. Sua coluna deu uma fisgada. Era a sexta vez que isto
ocorria em seis dias. Era melhor procurar um especialista o quanto antes.
Enfiou os pés na pantufa rosa, ficou de pé, fechou a cortina para o sol não
incomodar o marido e foi para o banheiro. Percebeu que seu cabelo já flutuava
em alguns pontos da cabeça, com a raiz despontando altiva, alva como a neve. Precisava
urgentemente ir ao salão de beleza. Assim que ficou pronta, deixou um
bilhetinho na mesa de cabeceira, pegou a bolsa e desceu para o café da manhã.
Passou pela recepção do hotel para perguntar onde havia um bom salão de beleza
nas redondezas. A recepcionista lhe atendeu sorridente, explicando que o salão
mais próximo ficava na rua de trás, mas que ele era um salão muito caro. Ela
não gostou desta abordagem. Que petulância desta moça! Será que ela acha que eu
não posso pagar? Respirou fundo para não brigar. Afinal, era seu primeiro dia
de férias, longe dos filhos e netos. Uma nova lua de mel com seu marido. Tinha
trabalhado tanto na semana que antecedeu a viagem que nem pode ir ao salão
renovar a pintura de seu cabelo. Queria ir logo, ainda cedo, pois seu marido
costumava dormir até mais tarde, o que lhe permitiria pintar o cabelo sem
necessidade dele ficar esperando. Pediu a recepcionista para escrever o nome e o endereço do salão. A moça, sempre sorrindo, logo lhe entregou um
pedaço de papel. A mocinha tinha até desenhado um mapa para ela não se perder.
Além do nome do salão, Juracy Coifeur, estavam no papel o endereço, Rua 29 de
Agosto, e o tal mapa. Ela quase teve uma síncope ao ver escrito “vire a ezquerda,
na segunda rua”. Com o papel nas mãos, aproximou-se da moça sorridente e lhe
disse quase sussurrando:
- Lindinha, há três erros de
português em uma simples e curta frase. O certo é vire à esquerda na segunda
rua. O a é craseado, esquerda se escreve com esse e não existe esta vírgula
onde você colocou. Bom dia!
O sorriso da moça foi esmaecendo
até desaparecer do rosto. Apenas agradeceu aquela gentileza da madame e pegou o
telefone que estava tocando em momento providencial.
Com o endereço do salão nas mãos
saiu toda faceira, esquecendo-se de tomar seu café da manhã. Andou cerca de
quatrocentos metros, chegando ao seu destino. Era cedo, mas o salão já estava
aberto. Ela olhou atentamente para o letreiro do local. Além do nome em letras
enormes, cheias de estilo e curvas, em tom vermelho forte, uma frase indicava a
especialidade da casa: hair, make up and fun. Cabelo, maquiagem e diversão? O
que seria aquilo. Entrou. Foi recebida por uma mulher jovem com cara de poucos
amigos.
- Tem horário marcado?
- Não, mas vejo que o salão está
vazio. Vocês podem me atender? Preciso pintar meu cabelo.
- A senhora trouxe sua tinta?
O telefone do salão tocou. A
atendente pediu licença e foi atender.
- Juracy Coifeur, bom dia! Sim,
oi Josefine. Não, sua mãe não está. Está, sim, está. Mesmo? Que desaforo! Pode
deixar comigo. Beijos.
Desligou o telefone, pegou um
espanador e saiu a limpar o porta revistas que ficava na recepção. Nem ligou
para a madame que deixara esperando. Mas a madame não se fez de rogada e tascou
uma pergunta em francês:
- Vouz parlez français?
- Não estou entendendo nada do
que a senhora está dizendo.
- Eu perguntei se você fala
francês.
- Não, porque deveria falar?
- Porque o salão tem o nome em
francês. Chama-se Juracy Coifeur. Diga-se de passagem há um erro de grafia no
letreiro, falta uma letra efe na palavra “coiffeur”.
- Não sou a dona. Apenas trabalho
aqui. A senhora trouxe ou não trouxe a tinta?
- Que educação é esta? É assim
que você trata as clientes? Não tenho nenhuma tinta comigo, mas é fácil, a
cor é preto profundo. E chama logo alguém para me atender. Vou sentar aqui nesta
cadeira.
A atendente atravessou uma
cortina de vidrilho e sumiu. Ela ficou ali sentada, mexendo em seu celular,
respondendo mensagens que chegavam sem parar. Estava tão absorta na telinha de
seu aparelho que nem viu uma esguia mulher se aproximar da sua cadeira.
- Bom dia. Sou Juracy, a dona do
salão. Atenderei a senhora. Veja se esta marca de tinta lhe satisfaz, por
favor.
- Bom dia. Não conheço esta
marca. O que me diz dela?
- É a que mais uso aqui no salão.
Minhas clientes estão satisfeitas. Não tenho reclamações.
- Como é apenas para passar estes
dias de férias, pode usar. Preto profundo, certo?
- Certo. Vamos logo começar, pois
daqui a pouco este lugar vai ficar lotado e tenho muita gente agendada. Haverá uma
super festa à noite, a mulherada quer ficar bonita. Afinal, o que importa é
ver e ser visto.
Juracy reclinou um pouco a
cadeira, deixando a madame com o rosto virado para o teto. Em seguida, começou
a passar a tinta, puxando, de vez em quando os seus cabelos. Aquilo foi
irritando-a de uma forma que logo ela protestou.
- A senhora está puxando os meus
cabelos. Está doendo.
- É assim mesmo, pois seu cabelo
é grosso, está sem vida e muito seco.
Um sorriso sarcástico apareceu no
rosto de Juracy. E deu mais uma puxada no cabelo com a escova. Desta vez foi
tão forte, que saiu um pequeno tufo de cabelo no seu instrumento de trabalho.
Ela gritou tão alto que deve ter acordado o marido lá no quarto do hotel. Mas
era durona, não sairia dali sem o preto profundo em seus cabelos.
- What the hell are you doing?
- Desculpe-me senhora, não foi
minha intenção. Já terminei, agora vou passar a tinta. A propósito, não entendi
o que a senhora disse.
- Lá fora está escrito “Juracy
Coifeur - hair, make up and fun”. A senhora não sabe inglês?
- Não. É mais chique escrever
assim. E ninguém se importa se está certo ou não a grafia. Sei que a senhora
disse para minha atendente que faltava um efe na palavra escrita em francês.
Para dizer a verdade, nem sabia que era francês. Pedi a uma amiga que me
ajudasse a escolher um nome estrangeiro e ela veio com ele pronto. Gostei,
mandei fazer o letreiro e o coloquei na frente do salão. Goste a senhora ou não,
este é o nome que eu escolhi. Por falar em nome, ainda não sei o da senhora.
- É Divah, com agá no final.
- A senhora corrigiu a sua mãe,
ou o homem do cartório onde foi feita a sua certidão de nascimento?
- Qual o motivo desta pergunta?
- Porque Diva não se escreve com
agá no final. Posso ser ignorante em estrangeiro, mas sei como se escreve Diva.
- Minha mãe não tem nada a ver
com isto. Eu mudei a grafia depois que fiz uma consulta com um numerólogo. O
agá me dá mais energia, mais segurança, mais firmeza.
- E a senhora escreve seu nome
assim, com agá no final?
- Claro. É meu novo nome.
Consegui até alterar minha cédula de identidade.
- Para a senhora ver, eu não
posso ter um nome que eu escolhi para o meu salão que a senhora logo vem
chegando, corrigindo, enquanto para seu nome, até alteração na carteira de
identidade a senhora fez.
- Cést la vie!
- O que?
- Nada não. Vamos terminar logo
com esta pintura!
- A senhora não está satisfeita
com meu serviço?
- Não é isto. Quero aproveitar as
minhas férias ao lado de meu marido. Deixei ele dormindo e vim para o seu
salão.
- Como a senhora soube de meu
salão?
- A recepcionista do hotel onde
estou me indicou. Burrinha, você precisava ver. Em uma frase com seis palavras
ela cometeu três erros de português. Falta qualificação para este pessoal que trabalha no setor de turismo. Aqui mesmo em seu salão, a atendente é mal humorada e ninguém fala uma outra língua. A cidade é turística, como vocês pretendem atender aos turistas que aqui vem todos os verões?
- Vou apressar sua pintura.
E as duas nada mais falaram. Passaram-se
mais de duas horas. Enfim, o cabelo estava pronto. Antes de levantar a cadeira,
Juracy baixou a cabeça até seus lábios ficarem bem próximos ao ouvido esquerdo
de sua cliente, quando sussurrou:
- A recepcionista do hotel que
lhe indicou meu salão é minha filha.
Divah ficou vermelha, sem saber onde colocava sua cara, enquanto
Juracy subia sua cadeira. Seu cabelo estava pronto. Olhou no espelho para ver
como tinha ficado.
Ficou sem palavras.
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