Quarta-feira, dia 21 de agosto de 2014, terceiro dia do Cena Contemporânea 2014. Ingresso na mão para conferir mais uma peça. Teatro Sesc Garagem, 21 horas. Fila enorme para esperar desistências ou sobras de convites. O teatro ficou muito cheio, com gente espalhada pelo chão em frente às cadeiras (acho que todos que estavam na fila de espera entraram). Muita expectativa para ver La chica de la agencia de viajes nos dijo que había piscina en el apartamento, montagem do grupo espanhol El Conde de Torrefiel. Em cena, nove atores, dos quais seis eram convidados da companhia. Estes convidados eram de Brasília. O texto gira em torno de uma temporada que duas amigas passam em uma praia espanhola. Para a encenação, o grupo utilizou performances coreografadas, projeção de texto narrativo, especialmente durante as performances, contando o que se passa com as duas amigas; além de discursos longos que retratam o bate papo destas amigas, quando as atrizes que as interpretam ficam posicionadas diagonalmente uma em frente à outra, sem se mover. Apenas uma fala em um microfone de pedestal, sem alterar a voz, sem mover braços ou mesmo alterar as suas expressões faciais. Fica parecendo um tipo de não-interpretação (o que de certa forma dialogava com o que vi na noite anterior no espetáculo Pichet Klunchun and Myself, no CCBB), onde o que mais importa é o texto.
A projeção da narrativa se dá em português, enquanto durante as falas das duas atrizes, Adriana Lodi, em off, faz a tradução simultânea (em texto previamente elaborado). Ficou parecendo aquelas transmissões da entrega do Oscar, com a voz de Lodi se sobrepondo às vozes das atrizes. A voz em off também seguia o tom monocórdio dos discursos. Confesso que este artifício me prejudicou em prestar atenção no texto, pois tinha momentos em que eu tentava seguir a narrativa em português, mas me via tentando entender o espanhol das atrizes. E isto piorava quando havia, no mesmo momento, alguma música da trilha sonora.
O texto é ácido, especialmente com relação à cultura pop que, segundo eles, esmagou qualquer possibilidade de a população, especialmente os mais jovens, de entender o mundo a partir de sua história. O Século XX é classificado pelo grupo como o Século da Merda Bonita. Uma frase chave deste pensamento é projetada quase ao fim do espetáculo: Guernica é um quadro famoso. Ou seja, hoje os espanhóis e os turistas que visitam a Espanha não sabem exatamente o que foi a Guernica. É apenas um quadro pintado por Picasso que ganhou fama mundial. Poucos sabem que se trata de uma batalha durante a guerra civil espanhola.
O texto é falado na forma de um discurso longo, cheio de referências ao mundo pop, particularmente do universo europeu. Citar o livro 2666, obra póstuma do escritor chileno Roberto Bolaño, dizendo que quem o leu entenderá o que a atriz diz a um dado momento, é bem provocativo. Fiz questão de olhar para os lados. Muita gente fazia cara de paisagem, pois muitos ali não sabiam quem era este escritor. Fiquei tentando imaginar qual seria a reação do público de língua espanhola ao ser provocado desta forma quando assistiram La Chica...
Três coreografias pontuam a aventura das amigas. Os atores convidados participam destas coreografias, sem nenhuma fala. A primeira é uma aula de tai chi chuan, quando as amigas decidem viajar juntas. A segunda é em um show de heavy metal na praia onde elas passam as férias e o que acontece depois dele, enquanto a terceira é uma festa tecno na mesma praia, também com participação das duas amigas.
A primeira parte da coreografia dos metaleiros é hilária, mas representa bem o comportamento dos metaleiros e o que acontece no mundinho deles, com um eterno bater de cabeças e rodopios das vastas cabeleiras. A segunda parte, com um bunda lelelê coletivo, no qual as bundas de fora pareciam os rostos das pessoas, é um "soco" na cara da plateia, com direito a "risadinhas" ao vivo. No mínimo, causou um certo desconforto. Alguns riram, outros mexeram nas cadeiras, outros suspiram e outros balançaram a cabeça. O nu da terceira coreografia não choca tanto. Todos ficam completamente sem roupa em cena, formando uma massa humana disforme, movida ao som do tecno e das drogas. Mais uma frase de impacto projetada no telão resume tudo: a cocaína é pop.
Em um dos discursos, a amiga diz para outra uma coisa sensacional: freiras e metaleiros eram os únicos integrantes de grupos (ou tribos, como dizemos por aqui) que se vestem de forma igual tanto no verão quanto no inverno. Adorei isto.
Ao final, o público estava visivelmente dividido. Parte aplaudia com entusiasmo, outros seguiam o protocolo com palmas frias e outra parte permanecia sentada. Fiquei no último grupo, sentado, sem saber direito se tinha ou não gostado. E assim fiquei até chegar em casa, quando pude refletir sobre tudo o que vi. Tirei a conclusão que tinha gostado, com exceção da sobreposição das falas ao vivo e em off (embora entenda que esta talvez seria a melhor forma para o público brasileiro entender o texto, já que as falas em espanhol eram longas, rápidas, cheias de gírias e referências europeias, não cabendo traduções simultâneas com aparelhos nos ouvidos).
A estética narrativa misturando projeção, coreografia e falas discursivas, sem uma interpretação clássica mostra que o mundo teatral pulsa, e muito, neste Século XXI. Espero que o público também consiga seguir este pulsar.
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