Para Renata
Dentro da caixa de correio havia apenas um envelope amarelo. Riva estava exausta, pois as planilhas nas quais trabalhara o dia inteiro a deixaram zonza. Só queria saber de cair na cama. Esperou o elevador com o envelope nas mãos. Não havia indicação de quem enviara aquela carta a ela. Tinha uma das mãos ocupada com papeis do trabalho, o que a impossibilitou em abrir o envelope. Seu cansaço era tão grande que suplantava qualquer resquício de curiosidade. Ao entrar em casa, Riva jogou tudo no tapete da sala e caiu prostrada no sofá. Dali não queria sair. Ficou a olhar para a parede, mas sem fixar algo definido. Era como se mirasse o nada. O envelope amarelo chamava a atenção, jogado no tapete. Adormeceu.
Ela não soube precisar o quanto dormira, mas sabia que tinha adormecido no sofá. Acordou com dores por todo o corpo. Aquele sofá, que tinha custado uma fortuna por ser objeto de design, definitivamente não servia para um corpo cansado. Riva olhou o seu relógio e a noite já avançava na madrugada. Uma leve fome a fez levantar. Abriu a geladeira, pegou o leite e encheu um copo. Deu duas goladas e deixou o resto. Não gostava de leite, mas sempre tinha em casa porque sua mãe lhe dizia que era importante uma mulher na sua idade beber aquele líquido horroroso e insosso. Voltou para a sala e viu o envelope.
Revigorada pelo sono, mesmo com as dores pelo corpo, a curiosidade bateu para saber o que havia dentro do envelope amarelo.
Tentou abri-lo com delicadeza, mas estava muito bem colado. Rasgou nas laterais. Um cintilante convite, também amarelo, era o conteúdo da carta.
Em letras que pareciam saltar do papel, um pequeno texto a chamava para uma festa. Era um amigo que não via há anos e que comemoraria seus cinquenta anos em um barco. Festa restrita. Poucos convidados. Junto ao convite, um mapa. A festa seria no sábado. O barco sairia às 11:00 horas da manhã. No convite havia a solicitação de confirmação via telefone. O que intrigou Riva foi o texto:
"Romualdo convida para seu aniversário de 50 anos com um ano de atraso. Favor confirmar presença pelo telefone abaixo indicado. Mapa para chegar ao local de partida do barco está atrás deste convite. Cuidado, pois a região é cheia de fumbambas".
Romualdo, como sempre, muito original, pensou Riva. Na verdade ele estava completando 51 anos, mas como não conseguiu fazer uma festa quando fez meio século, resolveu dar esta festa agora, por isso o tal convite com um ano de atraso. E ainda tinha o alerta para ter cuidado com os fumbambas. Mas que diabos eram os fumbambas. Riva pegou o celular para consultar o Google, mas ao clicar no ícone do seu navegador, apareceu um aviso de bateria fraca. O telefone apagou em seguida. Ela colocou o celular para carregar e foi tomar banho. Esqueceu completamente da consulta.
Na manhã seguinte, sexta-feira, levantou no horário de sempre para ir trabalhar. Assim que ficou pronta, recolheu os papeis do tapete e deu de cara com o convite novamente. Lembrou de ligar para confirmar presença. A festa seria no dia seguinte, mas como era muito querida de Romualdo, a pessoa que atendeu disse que ela nem precisava da confirmação, pois sabiam que ela estaria no barco na hora marcada. Ao finalizar a ligação, a moça perguntou se Riva iria sozinha. Recebeu resposta afirmativa. Iria de carro, sem levar ninguém. A moça agradeceu a ligação, despedindo-se com um alerta: "cuidado com os fumbambas". Riva desligou o telefone, clicando no navegador, mas nova ligação a impediu de pesquisar sobre os fumbambas. Era do trabalho. Problemas urgentes para resolver. E assim foi sua sexta-feira. Pesada, cansativa, urgências atropelando urgências. Esqueceu completamente dos fumbambas. De volta para casa, Riva tomou um remédio para dormir, acordando por volta de sete horas da manhã do sábado. Arrumou uma bolsa grande, colocando itens de quem vai passar o dia navegando no mar. Pelo que conhecia de Romualdo, a festa seria em um veleiro. Sabia mais ou menos a direção que deveria tomar, mas resolveu se certificar no Google Maps. De sua casa até o destino, cerca de duas horas de carro. Tinha tempo de sobra. Passou um bom protetor solar no rosto, pescoço e braços, deixando para passar no restante do corpo assim que entrasse no barco. Saiu em seguida. Maria Bethânia cantando Roberto Carlos seria a sua trilha sonora no caminho. O dia estava lindo. O celular ficou ligado no acendedor de cigarros para não descarregar, pois Riva usaria o Google Maps o tempo todo. Ela sabia que o aplicativo funcionava como GPS, mesmo sem sinal de internet. Quando Riva acompanhava Bethânia na música Fera Ferida, ela ouviu uma voz feminina mandando-a virar à direita em quatrocentos metros. Era o Google Maps. Riva olhou para a tela do seu celular, percebendo que estava sem sinal de internet. Maldita operadora!
No local indicado, virou à direita. O asfalto acabara. Era hora de percorrer uma estrada de terra. Já tinha rodado por mais de 75 minutos. Faltava pouco para chegar, mas como a estrada era ruim, Riva calculou que ainda teria que rodar por uns quarenta minutos. Voltou a cantar com Bethânia.
Uma curva acentuada à direita a fez reduzir a velocidade. Ao finalizar a curva, uma placa lhe chamou a atenção: "Região de fumbambas, tenha cuidado!" Ela não tinha pesquisado o que era aquilo e estava sem sinal de internet. Tinha que perguntar para Romualdo.
E mais uma curva apareceu em sua frente. Três cruzes brancas no meio da curva chamaram a sua atenção. Será que tinha morrido gente em acidente naquele local? Atrás das cruzes, tinha uma placa caída. Riva apurou a visão. Conseguiu distinguir a palavra "fumbambas". Pensamentos nebulosos lhe passaram pela cabeça. Será que os tais fumbambas tinham matado as pessoas que aquelas cruzes representavam?
Aumentou o volume do som do carro, deixando seu pensamento mergulhar na letra de "Detalhes". Mas apenas fumbambas povoavam sua cabeça. Começou a pensar que seriam integrantes de uma tribo canibal, preservada pela turma dos direitos humanos e que ela corria perigo. Checou se janelas estavam completamente fechadas e travou todas as portas do carro. Colocou um pouco mais de pressão no acelerador.
Outra placa, desta vez enorme, fincada no morro à esquerda da estrada, exibia novo alerta: "local de travessia de fumbambas, dirija com muito cuidado". Meu Deus!, soltou Riva. Não eram canibais, mas sim animais gigantes, pensou. Algo como mamutes, que estavam preservados pela turma do meio ambiente. Seria esmagada debaixo de uma das patas de uma espécime de paquiderme. Pegou o celular, mas sem sinal nenhum. A tela estava travada na página do Google Maps lá do início da estrada de terra.
A paisagem começou a mudar. A mata ia ficando rala, deixando lugar para um terreno arenoso, sinal de que se aproximavam do mar. A lama em certos pontos também indicava que um manguezal estava nas proximidades. Riva estava gelada. A qualquer momento uma horda de fumbambas poderia aparecer e ela estaria frita. Porque não ficara em casa. Bethânia continuava a cantar, alheia a qualquer perigo.
Enfim, o mar surgiu ao longe. Uma placa estava no meio da pista. Era um novo alerta sobre os fumbambas. Riva teve que jogar o carro na areia e quase ficou sem conseguir sair do lugar. Pisou fundo no acelerador, derrapou, jogou areia para todos os lados, mas conseguiu voltar para a estrada. O celular deu um apito. O sinal do GPS voltava a pegar. A mesma voz feminina disse que em seiscentos metros estava o seu destino. Riva avistou o veleiro e uma pequena canoa na praia. Um homem de meia idade a esperava.
Parou o carro ao lado de outros que estavam estacionados, pegou a bolsa, olhou bem para para todos os lados ainda dentro do veículo. Não avistou nenhum fumbamba, nada desconhecido. Desceu, fechou a porta, acionou o controle de travamento à distância, correndo até onde estava a canoa. Respirando ofegantemente, sentiu-se tonta, escorando no senhor, que perguntou se ela estava bem. Riva não conseguia falar nada. Fez sinal de positivo com o polegar, entrando na canoa. O senhor empurrou o pequeno barco e começou a remar em direção ao veleiro.
Na medida em que se aproximavam do veleiro, o som alto, rock brasileiro dos anos oitenta, podia ser ouvido de onde Riva estava. Ela foi relaxando aos poucos. Ao recuperar o fôlego, perguntou para o senhor o que eram os fumbambas. Ele apenas sorriu e disse que ela saberia no barco. Ficou apreensiva.
Riva era a última a chegar para o passeio. Atracaram no veleiro. O senhor a ajudou a subir em uma escada de metal que dava acesso à proa do barco. Romualdo a recebeu com um largo sorriso no rosto e uma taça de Veuve Clicquot nas mãos. Deu ordem para o marinheiro partir. Brindaram. Seguiu-se um longo abraço. Riva perguntou sobre os fumbambas. Romualdo não disse nada, apenas a conduziu até o outro lado do barco, onde uma turma se esbaldava com muita bebida, música e cigarro. Ao lado de cada um dos convidados havia um balde alaranjado no chão. Na mesa, vários bastões de madeira em forma de cilindro. Romualdo colocou Riva em uma cadeira ao seu lado e lhe mostrou o balde.
- Aí estão os fumbambas.
Riva gargalhou alto, muito alto. Ficara apavorada por causa de caranguejos.
Sim, fumbambas nada mais eram do que caranguejos.
Com uma expressão sádica no rosto, devorou os fumbambas de seu balde.
O veleiro já estava ao sabor dos ventos.
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