Desde que foi anunciada a programação do Cena Contemporânea 2011, a peça que eu mais queria ver era O Jardim, do grupo paulistano Cia. Hiato, pois já havia lido resenhas e críticas favoráveis a ela no jornal Folha de São Paulo, além de recomendações de amigas que viram-na na capital paulista. Pois bem, no décimo primeiro dia de festival, chegou a vez de eu conferir esta peça no Pavilhão de Vidro do CCBB. Paguei R$ 15,00 pelo ingresso. Sessão marcada para 20:30 horas. Quinze minutos antes, uma longa fila se formava na porta do pavilhão. Os ingressos estavam esgotados para as três sessões dentro da programação do festival. Ao entrar, três arquibancadas com cadeiras de fibra de vidro azuis estavam colocadas junto a três paredes do local, enquanto a parede do fundo estava decorada com caixas de papelão empilhadas. As atrizes, sentadas em caixas, também de papelão, já estavam em cena, enquanto o único ator da companhia dava voltas ao redor do linóleo, na verdade um tapete de grama sintética, retratando o jardim do título. Eu e Ric nos sentamos na arquibancada que ficava na lateral à esquerda de quem entra, enquanto meus amigos, os mesmos que saíram da peça carioca antes de seu término na noite anterior, se sentaram na arquibancada localizada à nossa frente, à direita de quem entra. À minha direita, a arquibancada que ficava de frente para a parede de caixas de papelão. Quando todos se instalaram em seus lugares, totalmente ocupados, as atrizes se levantam, se juntando ao ator, num vai e vem de caixas de papelão, dividindo o cenário em três, como se as caixas formassem paredes. Três cenas, uma voltada para cada arquibancada. Enquanto o balé de caixas se desenrolava, um ator mais velho foi entrando em cena bem devagar. Era o ator convidado Edison Simão. As cinco atrizes e o ator que compõem a Cia. Hiato são Aline Filócomo, Fernanda Stefanski, Luciana Paes Mariah Amélia Farah, Paula Picarelli e Thiago Amaral. A direção e a dramaturgia são de responsabilidade de Leonardo Moreira. As três cenas se passam em épocas distintas no tempo, mas com uma sincronia singular, como se todos estivessem vivendo no mesmo momento cronológico. As histórias tem lugar em 1938, 1979 e 2011. A arquibancada em que eu me sentei começou a ver o que se passava em 1938, com o casal Thiago e Fernanda se separando. No decorrer da cena, as paredes de papelão vão sendo desconstruídas, deixando que o público pudesse ver, parcialmente, o que se passava nas outras cenas, assim como era possível ouvir grande parte dos diálogos que aconteciam em frente as duas outras arquibancadas. A transposição de uma época para outra se dá de maneira contínua, sem interrupções. Nossa segunda encenação foi a de 1979, quando duas irmãs, Amanda e Luciana, cuidam de seu pai, Thiago (interpretado magistralmente por Edison Simão), já doente e sem lembranças, momentos antes de ele ser levado para um asilo. Na terceira e última cena, de 2011, Aline, filha de Amanda, está com a empregada Paula gravando um vídeo de recordação dos bons momentos em que viveram na casa do jardim, que está em processo de desapropriação. As três histórias se interligam no tempo e tem o jardim como elo comum. Na última história, ficção e realidade se fundem, numa breve homenagem à atriz Yara Amaral, que faleceu no naufrágio do Bateau Mouche em noite de reveillon no Rio de Janeiro, tragédia que também matou a personagem Luciana, atriz de filmes franceses. Ao longo da peça, o tema memória é a força motriz da história. Lembranças que não mais vem à mente de Thiago, que sofre na velhice do Mal de Alzheimer, lembranças materializadas em fotos do casal Thiago e Fernanda, ou em fotos que trazem recordações de infância de Amanda e Luciana; lembranças que estarão eternizadas no vídeo que Aline e Paula estão gravando em 2011; ou no áudio que Luciana e Amanda também gravam para o pai recordar dos momentos felizes que passaram no jardim. A história nos faz rir, nos emociona, nos faz chorar, é a vida que passa correndo à nossa frente, ficando para trás bons e maus momentos, gravados para sempre em coisas, em objetos, mas apagados da nossa memória pelo fator envelhecimento, pelo fator doença. Há frases marcantes, como quando é mostrado um aparelho de barbear e um par de sapatos por Aline, única coisa que sobrou de seu avô Thiago. É triste saber que as coisas vão durar mais que as pessoas, dizem mais de uma vez. Quando estamos vendo a última cena, as paredes de papelão quase já não mais existem. As histórias se confundem, se unem, os diálogos anteriores vem à nossa cabeça, à nossa lembrança. Reconstruímos o que vimos antes, unimos os fatos, verificamos o duo causa-efeito. Quando já não existem mais paredes, o jardim é único e todos os personagens nele transitam. Passado e futuro se encontram em uma emocionante cena quando Fernanda, a de 1938, fica frente a frente com Thiago, o de 2011, e eles se beijam. Uma lágrima insiste em sair de meus olhos. Ouço muitos fungados ao meu lado. A plateia se toca, chora, vive a cena. A peça termina para cima, com as boas lembranças do jardim. O Jardim. Foram quase dez minutos de aplausos. Um delírio. Os atores, visivelmente satisfeitos com a receptividade da plateia, agradecem à coordenação do festival pelo convite e anunciam uma sessão extra neste sábado, às 18 horas. A minha expectativa foi totalmente correspondida. É a peça que mais gostei de ter visto nesta edição do festival, cheio de atrações das quais gostei bastante. Ainda tenho ingressos para mais três espetáculos até domingo, quando se encerra a jornada do Cena Contemporânea 2011, mas creio que dificilmente alguma delas vá roubar o posto de a melhor do festival em minha opinião.
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