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domingo, 31 de agosto de 2014

LA FUNCIÓN POR HACER - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

Ainda sábado, 30 de agosto de 2014. Terceira peça do dia. Ainda Cena Contemporânea 2014. Sessão das 21 horas no Teatro Sesc Garagem para ver a montagem espanhola La Función Por Hacer, do grupo Kamikaze Producciones. Pela primeira vez neste festival, exigiram o comprovante de meia entrada na porta do teatro. No meu caso, paguei meia por ser correntista do Banco do Brasil. Sala completamente lotada. Cadeiras dispostas nos quatro cantos do teatro, com o palco ao centro, como se fosse um teatro de arena. As luzes ficaram acesas o tempo inteiro e o ar condicionado, muito frio quando entramos, foi desligado assim que começou o espetáculo. Na medida em que o tempo passava, mais e mais pessoas se abanavam com o que tinham nas mãos. O calor era cada vez mais forte. Os atores suavam em cena, mas ninguém se mexeu para ligar o ar. Ficamos assando até o final da peça, que durou perto de uma hora e meia. Uma mulher da plateia chegou a pedir, em alto e bom som, quando uma das atrizes sai correndo e abre a porta da sala para que ela deixasse a porta aberta. Sei que muitos atores pedem para desligar o ar, mas fico imaginando se eles fariam isto se estivessem se apresentando em algum teatro de Dubai.
Quanto ao espetáculo, é uma adaptação de texto clássico de Luigi Pirandello, Seis Personagens A Procura de Um Autor. Com roupagem naturalista, o grupo traz a história para os dias atuais, e consegue debater a essência do teatro, deixando cada um dos presentes absorvidos com o que se passava no tablado. Atuações ótimas, texto bem falado. Mesmo sem nenhum tipo de tradução, não foi difícil compreender o que os atores falavam, sempre em espanhol, mesmo nos momentos em que os diálogos ocorriam em velocidade máxima.
Um belo espetáculo que faz jus aos vários prêmios que já recebeu na Espanha.
Gostei muito.

A BICICLETA DO POETA - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

Ao sair do Teatro II do CCBB no final da tarde de sábado, 30 de agosto, deparei-me com o início da performance do artista Emmanuel Marinho, oriundo da cidade de Dourados, em Mato Grosso do Sul. Ele estava andando em uma bicicleta (era na verdade um triciclo), cantando uma música de sua autoria. Algumas pessoas foram se posicionando na grama, bem próximo de onde acontecia a cena. Fiz o mesmo. Era o início do poético espetáculo A Bicicleta do Poeta, também integrante da programação do Cena Contemporânea 2014. Em cerca de 45 minutos, o ator/poeta cantou, declamou suas poesias, mexeu com o público, que foi chegando aos poucos, distribuiu poemas, deu tarefas para pessoas que estavam na plateia, enfim, interagiu de forma tranquila, espontânea, agradável e feliz com o público. Suas poesias que tinham os bichos do Pantanal e do Cerrado como tema são divertidas e agradam a crianças e adultos. Duas meninas que aparentavam ter cinco anos estavam absortas com os "causos" poéticos de Emmanuel. Até mesmo seu nome entrou na roda, em um poema que fala da ema, do anel, do ano e de Emmanuel. Também teve poesia que remetia a fatos históricos recentes da política brasileira, como o mandato de Fernando Collor na Presidência da República.
Mas o melhor foi a movimentação que ele fez para a sua bicicleta voar. Quando me vi, estava eu ajudando o artista, segurando um pano/cartaz com um poema que se apropriava da famosa frase "gentileza gera gentileza", enquanto ele declamava e cantava. Depois, todos fomos chamados a ajudar a bicicleta a  voar, quando seguimos, em cortejo, atrás do poeta e de sua bicicleta pelos espaços abertos do CCBB, despertando a curiosidade daqueles que estavam no restaurante ou simplesmente passeando pelo vão central do centro cultural. Poeticamente, a bicicleta voou, assim como todos nós.
Fui embora mais leve.

FIOS DE HISTÓRIAS - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

Fios de Histórias foi mais uma peça da programação do Cena Contemporânea 2014 de procedência local. Dirigida ao público infantil, é baseada em livro de Salman Rushdie chamado Haroun e o Mar de Histórias. Idealizada por Mariza Vargas e dirigida por Míriam Virna, a peça entrou em cartaz no Teatro II do CCBB, que recebeu excelente público, entre adultos e crianças, para a sua sessão de estreia ocorrida no sábado, dia 30 de agosto, às 17 horas.
O cenário, adereços e figurino chamam a atenção pelo material utilizado em suas confecções: papelão, plástico, tampinhas de garrafas pet, entre outros itens recicláveis. Este uso já demonstra a preocupação de transmitir uma mensagem de preservação do meio ambiente, no caso, da água. O espetáculo dura cerca de uma hora e cumpre seu papel de entreter senhores, senhoras, meninos e meninas, como eles anunciam logo no início.
A interpretação é claramente baseada em desenhos animados, o que garantiu uma melhor aproximação com as crianças presentes, que não desgrudavam os olhos do palco, prestando atenção nas aventuras de Haroun e seu pai, Rashid Kalifa, um contador de histórias que perde o poder de contar histórias quando Soraya, sua mulher, o abandona. Pai e filho vão à Cidade Tagarela e lideram a luta contra o malvado Kathan Shud para salvar o Mar de Histórias.
Com exceção de Kael Studart, que interpreta o garoto Haroun, todos os demais atores se revezam em mais de um papel. E justamente o que faz um único papel, Studart, é o ponto fraco da peça. Sua interpretação é linear. Nem mesmo com expressões faciais fortes, que usa e abusa durante o espetáculo, ele consegue passar verdade. Já os demais atores estão bem caracterizados em cena, com destaque para a ótima interpretação de Mário Luz, ator que também esteve em outra montagem neste festival: Autópsia. Ele interpreta o gavião-avião, o vizinho de Haroun, o pretendente da princesa e o terrível Kathan Shud. A aparição dele como o pretendente da princesa foi tão forte que assustou uma criança que estava na primeira fila. O menino chorava tanto que seus pais tiveram que tirá-lo do teatro na mesma cena.
Usando muita fantasia, o texto trata de temas muito atuais, como a necessidade de preservação do meio ambiente, e o valor da amizade.
História deliciosa.

sábado, 30 de agosto de 2014

OTHELO - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

Othelo, clássico de William Shakespeare, foi a décima quarta peça que vi no festival Cena Contemporânea 2014. Foi na noite de sexta-feira, dia 29 de agosto, no Teatro I do CCBB, sessão das 21 horas. Teatro bem cheio para conferir esta montagem de um grupo argentino, integrado por quatro atores, conduzido por Gabriel Chamé Buendía. Confesso que fui para o teatro sem muita vontade de ver a peça, pois não gostei do que li na sinopse disponível no catálogo do festival. Buendía propõe releituras dos grandes clássicos do teatro, especialmente de textos escritos por Shakespeare, utilizando linguagens pouco ortodoxas, como o teatro burlesco ou elementos do clown (detesto esta palavra!), além de abusar do teatro corporal, no qual os atores tem que demonstrar excelente preparo físico e muita maleabilidade em cena. Não gosto do teatro que abusa de linguagem própria de palhaços no circo. É certo que já vi, e gostei, de peças encenadas pelo grupo Clowns de Shakespeare, do Rio Grande do Norte, o que me motivou um pouquinho para conferir esta montagem de Othelo.
Mas foi duro de aguentar. Quase duas horas de espetáculo, cheio de gagues típicas de programas de humor que passam na TV aberta ou das comédias pastelão que são sucesso de público nos palcos do Brasil. Há elementos interessantes nesta montagem, como a utilização de projeções ao vivo de algumas cenas, com os atores fazendo caras e bocas, além de recursos cênicos de movimento de água utilizando panos prateados, mas, no geral, não me agradou a peça.
O texto ficou em segundo plano. O que se sobressaiu foi a comédia burlesca, resvalando no pastelão. Era como se eu estivesse vendo Os Melhores do Mundo falando em espanhol. Com quarenta minutos de espetáculo, já tinha visto o suficiente para saber que não iria gostar. Com uma hora e vinte minutos, pensei que estava vendo um filme que nunca tem fim, como Lawrence da Arábia ou E O Vento Levou...
Ao final, a esmagadora maioria do público presente no teatro aplaudiu de pé, com gritos calorosos, demonstrando a satisfação que teve em ver aquela montagem de Othelo. Percebi que minha sintonia era totalmente diferente, mas não estava só. Karina e André P. também não gostaram. Carol, também minha amiga, gostou muito. Realmente não apreciei o espetáculo.

NOCTILUZES - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

Festival Cena Contemporânea 2014, décimo primeiro dia, sexta-feira, 29 de agosto. Chegou a vez de Noctiluzes, outra montagem brasiliense na programação do festival. Teatro Goldoni, 19 horas. A peça já tinha estado em cartaz no Teatro II do CCBB, no primeiro semestre deste ano. Em cena, a Cia Plágio de Teatro. Quando li que era uma encenação de texto do argentino Santiago Serrano, fiquei empolgado, pois gostei muito de dois textos dele que já foram encenados por atores de Brasília, Dinossauros e Fronteiras. Ambos poéticos, ambos com personagens que não se conhecem, ambos com reflexões profundas sobre o ser humano, suas decepções, desilusões e sua necessidade de interagir com outros.
Noctiluzes me instigou mais ainda por ser um texto escrito por Serrano para o grupo brasiliense.
Em cena, os atores Chico Sant'Anna, que dá vida a um cego; Sérgio Sartório, responsável também por tradução e direção, que interpreta um homem que precisa cumprir uma promessa feita para a esposa; e Vinícius Ferreira, vivendo um homem desiludido. Nenhum dos três se conhece, mas estão no mesmo píer de uma cidade portuária que não mais recebe navios. É noite. Cada um está no píer por motivos que só eles sabem e não querem, a princípio, compartilhar seus medos e segredos com ninguém. Ao longo dos cerca de 80 minutos de duração do espetáculo, surpresas e reviravoltas pontuam a história, deixando o público cada vez mais ligado. As tiradas do cego são sensacionais.
A poesia de Serrano continua presente neste texto, assim como a discussão da solidão, da falta de solidariedade, mas também tem a construção de elos fortes de amizade, mesmo entre desconhecidos, a comunhão em prol de um bem comum.
As interpretações dos atores estão em ponto certo, sem arroubos gestuais, em perfeita comunhão com a situação. O cenário, simples, mas carregado de significados, também é digno de nota. Gostei muito.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

TOMORROW - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

Ainda na noite de quinta-feira, dia 28 de agosto de 2014, após ter conferido Adaptação no CCBB, fui para o Teatro Funarte Plínio Marcos, onde acontecia a estréia de Tomorrow, montagem do grupo escocês Vanishing Point Theatre Company. Quando lá cheguei, uma fila enorme já se formava para entrar. Encontrei-me com Hélida G. e André P. e ficamos batendo papo sobre as peças que já tínhamos visto até então dentro da programação do Cena Contemporânea 2014. Tomorrow é a primeira co-produção do festival. Muita expectativa, ainda mais que um ator brasiliense, William Ferreira, estaria em cena. Teatro completamente lotado. O calor de sempre na sala de espetáculo, já que lá não tem ar condicionado. Antes de iniciar, o diretor da peça, Matthew Lenton apareceu no palco para um recado ao público. Disse que a peça seria falada em inglês, com legendas em português, e que algumas falas não seriam traduzidas, o que era normal, não seria uma pane no sistema de legendagem. Os atores improvisavam em cena. Disse para a plateia prestar atenção no que ocorria no tablado, seria tudo perfeitamente entendível. Informou, ainda, que figurino, aparelhos de iluminação, entre outros objetos, ficaram retidos na alfândega brasileira no aeroporto de Guarulhos. Agradeceu à equipe do festival por ter conseguido providenciar o que precisava para colocar a peça em cena.
A história gira em torno de um asilo de velhos, todos senis, contando a rotina diária deles com os empregados do local. Para envelhecer os atores, o diretor optou por usar aquelas próteses de borracha, muito comum nos filmes hollywoodianos. Embora com feições totalmente distintas, os velhinhos ficaram sem expressão. Não gostei.
A ideia da peça até que é interessante, mas a forma como foi contada não me agradou. A julgar pelos que deixaram o teatro enquanto rolava a encenação, não fui o único a pensar assim. Roubando uma intervenção de minha amiga Hélida G., soou muito moralista, o típico moralismo inglês, que não consegue expiar seus pecados históricos. Tive uma sensação de ser culpado por todas as mazelas contra velhinhos existentes no mundo, especialmente em asilos. A tentativa de colocar a culpa em toda a humanidade é patente. Uma pena que foi assim, pois a iluminação e a movimentação dos atores em cena é muito boa. A cena da tentativa de revolta dos idosos, com direito a tentativa de fuga como se fossem prisioneiros de um cárcere de segurança máxima, é hilária. Mas fica por aí. Ao final, pela primeira vez no festival dentre as peças que assisti, não ouvi nenhum grito de entusiasmo. Ouvi apenas palmas, até diria que foram palmas protocolares. Vi muita gente sentada, sem nem mesmo aplaudir, grupo ao qual me filiei. Na saída, comentários diversos, mas nenhum deles de forma entusiasmada pelo que viram em cena. Realmente não gostei do que vi.

NO SALÃO DE BELEZA

Para Diana

A luz do sol entrou pela fresta da janela atingindo seu rosto. Ela acordou sentindo um calorzinho bom na pele. Olhou para o lado e seu marido ainda dormia o sono dos justos. Virou-se de lado para sair melhor da cama. Sua coluna deu uma fisgada. Era a sexta vez que isto ocorria em seis dias. Era melhor procurar um especialista o quanto antes. Enfiou os pés na pantufa rosa, ficou de pé, fechou a cortina para o sol não incomodar o marido e foi para o banheiro. Percebeu que seu cabelo já flutuava em alguns pontos da cabeça, com a raiz despontando altiva, alva como a neve. Precisava urgentemente ir ao salão de beleza. Assim que ficou pronta, deixou um bilhetinho na mesa de cabeceira, pegou a bolsa e desceu para o café da manhã. Passou pela recepção do hotel para perguntar onde havia um bom salão de beleza nas redondezas. A recepcionista lhe atendeu sorridente, explicando que o salão mais próximo ficava na rua de trás, mas que ele era um salão muito caro. Ela não gostou desta abordagem. Que petulância desta moça! Será que ela acha que eu não posso pagar? Respirou fundo para não brigar. Afinal, era seu primeiro dia de férias, longe dos filhos e netos. Uma nova lua de mel com seu marido. Tinha trabalhado tanto na semana que antecedeu a viagem que nem pode ir ao salão renovar a pintura de seu cabelo. Queria ir logo, ainda cedo, pois seu marido costumava dormir até mais tarde, o que lhe permitiria pintar o cabelo sem necessidade dele ficar esperando. Pediu a recepcionista para escrever o nome e o endereço do salão. A moça, sempre sorrindo, logo lhe entregou um pedaço de papel. A mocinha tinha até desenhado um mapa para ela não se perder. Além do nome do salão, Juracy Coifeur, estavam no papel o endereço, Rua 29 de Agosto, e o tal mapa. Ela quase teve uma síncope ao ver escrito “vire a ezquerda, na segunda rua”. Com o papel nas mãos, aproximou-se da moça sorridente e lhe disse quase sussurrando:
- Lindinha, há três erros de português em uma simples e curta frase. O certo é vire à esquerda na segunda rua. O a é craseado, esquerda se escreve com esse e não existe esta vírgula onde você colocou. Bom dia!
O sorriso da moça foi esmaecendo até desaparecer do rosto. Apenas agradeceu aquela gentileza da madame e pegou o telefone que estava tocando em momento providencial.
Com o endereço do salão nas mãos saiu toda faceira, esquecendo-se de tomar seu café da manhã. Andou cerca de quatrocentos metros, chegando ao seu destino. Era cedo, mas o salão já estava aberto. Ela olhou atentamente para o letreiro do local. Além do nome em letras enormes, cheias de estilo e curvas, em tom vermelho forte, uma frase indicava a especialidade da casa: hair, make up and fun. Cabelo, maquiagem e diversão? O que seria aquilo. Entrou. Foi recebida por uma mulher jovem com cara de poucos amigos.
- Tem horário marcado?
- Não, mas vejo que o salão está vazio. Vocês podem me atender? Preciso pintar meu cabelo.
- A senhora trouxe sua tinta?
O telefone do salão tocou. A atendente pediu licença e foi atender.
- Juracy Coifeur, bom dia! Sim, oi Josefine. Não, sua mãe não está. Está, sim, está. Mesmo? Que desaforo! Pode deixar comigo. Beijos.
Desligou o telefone, pegou um espanador e saiu a limpar o porta revistas que ficava na recepção. Nem ligou para a madame que deixara esperando. Mas a madame não se fez de rogada e tascou uma pergunta em francês:
- Vouz parlez français?
- Não estou entendendo nada do que a senhora está dizendo.
- Eu perguntei se você fala francês.
- Não, porque deveria falar?
- Porque o salão tem o nome em francês. Chama-se Juracy Coifeur. Diga-se de passagem há um erro de grafia no letreiro, falta uma letra efe na palavra “coiffeur”.
- Não sou a dona. Apenas trabalho aqui. A senhora trouxe ou não trouxe a tinta?
- Que educação é esta? É assim que você trata as clientes? Não tenho nenhuma tinta comigo, mas é fácil, a cor é preto profundo. E chama logo alguém para me atender. Vou sentar aqui nesta cadeira.
A atendente atravessou uma cortina de vidrilho e sumiu. Ela ficou ali sentada, mexendo em seu celular, respondendo mensagens que chegavam sem parar. Estava tão absorta na telinha de seu aparelho que nem viu uma esguia mulher se aproximar da sua cadeira.
- Bom dia. Sou Juracy, a dona do salão. Atenderei a senhora. Veja se esta marca de tinta lhe satisfaz, por favor.
- Bom dia. Não conheço esta marca. O que me diz dela?
- É a que mais uso aqui no salão. Minhas clientes estão satisfeitas. Não tenho reclamações.
- Como é apenas para passar estes dias de férias, pode usar. Preto profundo, certo?
- Certo. Vamos logo começar, pois daqui a pouco este lugar vai ficar lotado e tenho muita gente agendada. Haverá uma super festa à noite, a mulherada quer ficar bonita. Afinal, o que importa é ver e ser visto.
Juracy reclinou um pouco a cadeira, deixando a madame com o rosto virado para o teto. Em seguida, começou a passar a tinta, puxando, de vez em quando os seus cabelos. Aquilo foi irritando-a de uma forma que logo ela protestou.
- A senhora está puxando os meus cabelos. Está doendo.
- É assim mesmo, pois seu cabelo é grosso, está sem vida e muito seco.
Um sorriso sarcástico apareceu no rosto de Juracy. E deu mais uma puxada no cabelo com a escova. Desta vez foi tão forte, que saiu um pequeno tufo de cabelo no seu instrumento de trabalho. Ela gritou tão alto que deve ter acordado o marido lá no quarto do hotel. Mas era durona, não sairia dali sem o preto profundo em seus cabelos.
- What the hell are you doing?
- Desculpe-me senhora, não foi minha intenção. Já terminei, agora vou passar a tinta. A propósito, não entendi o que a senhora disse.
- Lá fora está escrito “Juracy Coifeur - hair, make up and fun”. A senhora não sabe inglês?
- Não. É mais chique escrever assim. E ninguém se importa se está certo ou não a grafia. Sei que a senhora disse para minha atendente que faltava um efe na palavra escrita em francês. Para dizer a verdade, nem sabia que era francês. Pedi a uma amiga que me ajudasse a escolher um nome estrangeiro e ela veio com ele pronto. Gostei, mandei fazer o letreiro e o coloquei na frente do salão. Goste a senhora ou não, este é o nome que eu escolhi. Por falar em nome, ainda não sei o da senhora.
- É Divah, com agá no final.
- A senhora corrigiu a sua mãe, ou o homem do cartório onde foi feita a sua certidão de nascimento?
- Qual o motivo desta pergunta?
- Porque Diva não se escreve com agá no final. Posso ser ignorante em estrangeiro, mas sei como se escreve Diva.
- Minha mãe não tem nada a ver com isto. Eu mudei a grafia depois que fiz uma consulta com um numerólogo. O agá me dá mais energia, mais segurança, mais firmeza.
- E a senhora escreve seu nome assim, com agá no final?
- Claro. É meu novo nome. Consegui até alterar minha cédula de identidade.
- Para a senhora ver, eu não posso ter um nome que eu escolhi para o meu salão que a senhora logo vem chegando, corrigindo, enquanto para seu nome, até alteração na carteira de identidade a senhora fez.
- Cést la vie!
- O que?
- Nada não. Vamos terminar logo com esta pintura!
- A senhora não está satisfeita com meu serviço?
- Não é isto. Quero aproveitar as minhas férias ao lado de meu marido. Deixei ele dormindo e vim para o seu salão.
- Como a senhora soube de meu salão?
- A recepcionista do hotel onde estou me indicou. Burrinha, você precisava ver. Em uma frase com seis palavras ela cometeu três erros de português. Falta qualificação para este pessoal que trabalha no setor de turismo. Aqui mesmo em seu salão, a atendente é mal humorada e ninguém fala uma outra língua. A cidade é turística, como vocês pretendem atender aos turistas que aqui vem todos os verões?
- Vou apressar sua pintura.
E as duas nada mais falaram. Passaram-se mais de duas horas. Enfim, o cabelo estava pronto. Antes de levantar a cadeira, Juracy baixou a cabeça até seus lábios ficarem bem próximos ao ouvido esquerdo de sua cliente, quando sussurrou:
- A recepcionista do hotel que lhe indicou meu salão é minha filha.

Divah ficou vermelha, sem saber onde colocava sua cara, enquanto Juracy subia sua cadeira. Seu cabelo estava pronto. Olhou no espelho para ver como tinha ficado.
Ficou sem palavras.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

ADAPTAÇÃO - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

E minha maratona de teatro continuou na noite de quinta-feira, 28 de abril de 2014. Por causa de um engarrafamento grande na L4, cheguei ao Teatro II do CCBB faltando cinco minutos para o horário previsto para ter início a peça Adaptação, espetáculo brasiliense dentro da programação do Cena Contemporânea 2014.
Sala cheia para ver a performance de Gabriel F. no monólogo que ele assina texto e direção, além da interpretação. No palco, ele vive uma atriz de 29 anos em início de carreira. Ela aperta os dedos das mãos sem parar, mostrando nervosismo por ser seu primeiro trabalho e o diretor, vivendo conflitos existenciais, não lhe entregou um texto para decorar e nem se faz presente, tendo preferido uma sessão de cinema para espairecer.
Ela simplesmente está no palco, diante de um público, sem saber o que falar. Seu diretor lhe disse que aquela apresentação seria uma experiência cênica sobre o vazio, sobre a falta de ideias. Mas o texto de Adaptação mostra o contrário, demonstra como estava inspirado Gabriel F. ao concebê-lo. Mesmo em uma cena que poderia soar boba, quando a atriz nos conta que seu diretor havia lhe questionado se ela interpretaria um dinossauro. O público riu muito, mas, em seguida, a cena é tão carregada de lirismo, que as risadas se transformam aos poucos em uma quase comoção pela situação do dinossauro.
A peça dura cerca de uma hora. Durante todo este tempo Gabriel F. vive a mesma personagem, a atriz em início de carreira, mas relata situações vivenciadas por outras pessoas, como o seu diretor ou um professor de piano que ela teve quando morava no interior, que circulavam em torno do mesmo tema: a necessidade de se adaptar em várias fases da vida.
Há frases muito interessantes durante o monólogo, entre elas lembro-me bem quando diz que tem 29 anos, idade em que é jovem para ser velha, mas velha para ser jovem.
Além de interpretar, Gabriel F. também toca piano no palco, quando interpreta uma triste canção. Ao final, ele/ela fica em pé diante de um microfone de pedestal e canta uma deliciosa canção sobre a adaptação que a atriz se sujeita para ser aquela mulher.
O tempo inteiro do monólogo fica a dúvida: mulher ou transexual? A resposta está em detalhes sutis durante o espetáculo.
Ao final, o público ovaciona o belo trabalho de Gabriel F. Mais uma peça de Brasília que deu um show no Cena Contemporânea 2014.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

AUTÓPSIA I E II - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

As montagens de grupos de Brasília que integram a programação do Cena Contemporânea 2014 têm me conquistado, seja pela força da interpretação, seja pela ousadia na encenação. E não foi diferente com o espetáculo que fui conferir na noite de terça-feira, 26 de agosto, no Teatro Dulcina. A peça era Autópsia, dividida em duas partes, Autópsia I e Autópsia II, como peças autônomas, cujos ingressos foram vendidos separadamente. Tinha ingresso para as duas. A primeira parte, mais longa, cerca de noventa minutos, estava marcada para ter início às 19 horas, enquanto a segunda, com uma hora de duração, seria às 21 horas. Como em todas as peças que fui nesta edição, formou-se uma fila de bom tamanho para comprar ingressos de última hora. Na porta do Dulcina, fiquei sabendo que os sem ingresso formavam a Fila Amiga. As portas se abriram quando já passavam de 19 horas. O público foi acomodado em cadeiras dispostas no próprio palco. Seriam poucos em apenas duas fileiras de cadeiras. Sentei-me na primeira fila, em posição central, ao lado do diretor do espetáculo, o sempre competente Jonathan Andrade. Praticamente todo mundo que estava na fila de espera conseguiu entrar. Assim que todos se acomodaram, rolou a gravação do festival e, em seguida, as luzes se apagaram, ficando o teatro mergulhado no breu.
Barulho de passos no tablado e sons de um vento emitidos pelos próprios atores indicavam que eles estavam se posicionando em cena. Quando as luzes se ascenderam, os dez atores estavam completamente nus na frente do público. Cada um se apresentou dizendo nome do personagem, altura e idade (estes dois últimos me parecem ser os dados reais dos atores), além de uma frase chave do personagem que logo representariam. E as idades variavam de vinte e poucos anos a sessenta e cinco anos. Todos ali na nossa frente, nus, preparados para a autópsia, não de seus corpos, mas das vidas de suas personagens.
Autópsia é uma adaptação de textos de Plínio Marcos (autor também encenado em Mundaréu neste mesmo Cena Contemporânea). Assim, os personagens sempre marginalizados do dramaturgo, como desempregados, prostitutas, travestis, cafetinas, gigolôs, menores no mundo do crime, se fazem presentes nas esquetes baseadas em Quando as Máquinas Param; Navalha na Carne; Querô, Uma Reportagem Maldita; Dois Perdidos numa Noite Suja e Abajur Lilás. As três primeiras tem suas adaptações apresentadas na parte I e as duas últimas integram a parte II da peça.
A escolha intérprete/personagem me pareceu algo bem estudado, pois em certos momentos a sensação que se tem é que as personagens foram escritas exatamente para aquele ator ou atriz. E Jonathan Andrade se aproveita muito bem desta sinergia em sua excelente direção. Todos os atores e atrizes em cena tem seu destaque, ninguém suplanta ninguém.
Cada esquete tem vida própria, motivo pelo qual não há nenhum prejuízo para quem consegue assistir somente uma das partes. Se fosse Autópsia I, II, III, IV e seria extramente possível e compreensível. Mas ver as duas partes de uma vez, seguidamente, foi muito bom, pois, embora independentes, as histórias se entrelaçam, possibilitando ao público um melhor dissecar da vida exposta de cada uma das personagens. Temas atuais, sempre presentes nas campanhas políticas que ora vivenciamos, são expostos de maneira crua, real, sem firulas. Desemprego, aborto, dominação, exploração do trabalho alheio, falta de perspectivas na vida, violência, entre outros, são questões que saem das entranhas do tablado para repercutir no público, que reage com risadas, com choro, com inquietação na cadeira, com cara de paisagem. Mas reage!
A violência física e psicológica é muito utilizada nas cinco esquetes. Tinha hora que eu ficava com dó da atriz ou do ator que apanhavam no palco. Os tapas, socos, empurrões e puxões de cabelo eram reais. O barulho dos tapas na cara na esquete de Navalha na Carne eram desconcertantes.
A nudez também é um elemento bastante utilizado em todas as cinco esquetes, mas é nas duas últimas que ela aparece com mais ênfase, ou melhor, de maneira mais provocante e chocante, especialmente em Dois Perdidos numa Noite Suja.
Outro elemento utilizado na encenação é um breve diálogo entre um ator e alguém do público. Neste bate papo, o ator deixa de vivenciar a personagem para abordar algum tema que tenha relação com a cena que acontece no palco. Eu fui um dos escolhidos em Navalha na Carne, quando a atriz que interpreta a prostituta Neusa Sueli me pergunta com quem moro e se eu poderia considerar minha casa como um ninho, um lugar de aconchego.
Enfim, um trabalho visceral, vigoroso, onde os atores não têm medo de serem expostos.
Eles saem de cena e não voltam para receber os aplausos. Quando o público sai do teatro, eles estão do lado de fora, recebendo calorosos apupos e palmas de quem teve o privilégio de assisti-los. Quem passava pelo CONIC, onde fica o Teatro Dulcina, não entendia nada. E, nós, extasiados com o que acabávamos de ver, terminávamos nossa autópsia.
Parabéns ao diretor Jonathan Andrade e ao elenco - Alneiza Faria, Jeferson Alves, Maria Eugênia Félix, Mário Luz, Pedro Ribeiro, Regina Sant'Ana, Ricardo Brunswick, Sami Maia, Sérgio Dhubram e Shevan Lopes. Belíssimo trabalho!

terça-feira, 26 de agosto de 2014

ELEFANTE - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

Já vi vários espetáculos e filmes que têm a velhice e/ou a relação do homem com a morte como tema. Alguns ótimos, outros bons e outros sofríveis. Assim que terminou a peça Elefante, dentro da programação do Cena Contemporânea 2014, imediatamente a coloquei no rol das ótimas. Fui ver a sessão das 21 horas do domingo, dia 24 de agosto, no Teatro Funarte Plínio Marcos. Além das cadeiras normais do local, foram colocadas outras tantas no palco, dando uma sensação de teatro de arena, com a trama sendo desenvolvida em um círculo no centro do palco. Teatro completamente lotado. Iluminação marcada e o texto indicavam o espaço físico onde rolava uma determinada cena, podendo ser na casa do fotógrafo casado com uma médica, na casa dos pais do fotógrafo, ou no consultório médico da mulher do fotógrafo. Não há troca de figurinos. O destaque fica por conta do texto, da direção e da interpretação leve, bem humorada, mas no tom certo, sem a comédia suplantar o drama, ponto alto da peça. Montagem da Probástica Cia de Teatro, grupo do Rio de Janeiro, que conta no elenco com Igor Angelkorte (também responsável pela direção), Samuel Toledo, Fernando Bohrer, Chandelly Braz e Livia Paiva. Elefante tem como mote a velhice, a forma como todos nós lidamos com ela, além de discutir a relação dos humanos com a própria morte.
A história acontece em um tempo onde as pessoas permanecem jovens a partir de uma descoberta de uma pílula da juventude. Mas existe uma ilha, para onde só se vai com autorização do governo, chamada Sênica, onde as pessoas não tomam esta pílula, envelhecem e morrem naturalmente. A pílula garante a juventude sem doenças, mas não garante vida eterna. As pessoas continuam a morrer por causas não naturais, como acidentes e assassinatos. Por causa da longevidade, o governo exerce um rigoroso controle de natalidade, só podendo ter filhos os casais que recebem uma autorização para tal. O fotógrafo vai para a ilha fazer um trabalho encomendado pelo governo para estampar mais uma campanha publicitária da pílula. O contato com os moradores da ilha, especialmente os mais velhos, e com o modo de vida daquele local, transformam sua vida e sua forma de pensar a morte, a sua própria morte. Ele decide largar tudo para viver em Sênica. Dez anos depois, ele retorna com as marcas da velhice esculpidas em seu corpo e também acaba por mudar a vida da sua mulher e de seus pais. Tudo isto é contado de forma leve, mas sem deixar de lado a profundidade do tema. Além da questão da velhice e da morte, a busca desenfreada pela juventude nos dias atuais, por meio da medicina e da tecnologia, também é retratada no texto. Em todo momento, em todas as cenas, mesmo as mais banais, há pontos para uma boa reflexão.
A cena mais tocante acontece quando o fotógrafo, já velho, vai tirando a sua roupa em frente a sua mulher, mostrando suas rugas, sua corcunda, as marcas do tempo em seu corpo. Ela, tocada com a situação, pega uma máquina fotográfica e faz algumas fotos dele ali parado, nu, no centro do palco. Uma lágrima rolou pelo canto dos meus olhos. Muito choro silencioso rolou no teatro.
Lindo, comovente, bem dirigido, bem encenado.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

MISANTHROFREAK - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

Início da noite de domingo, dia 24 de agosto de 2014. Pouco antes das 19 horas eu já estava na fila para entrar no Teatro Goldoni para conferir mais uma atração do Cena Contemporânea 2014. Era a peça Misanthrofreak, montagem do Grupo Desvio (DF), com atuação, direção, luz e som de Rodrigo Fischer. Mais uma vez, sala completa para ver Fischer em cena. Inspirada em Samuel Beckett, a peça tem pouco menos que uma hora de duração. O ator já estava em cena quando o público começou a entrar e se acomodar nas cadeiras do local.
Dois telões, uma parafernália de equipamentos eletrônicos, papéis A4 espalhados pelo chão, uma boneca inflável, uma mala, um balão prateado em forma de coração, e alguns brinquedos compõem o cenário. Fischer vestia um figurino que me lembrou Carlitos (parafraseando a música de João Bosco e Aldir Blanc, O Bêbado e A Equilibrista). Não há muito texto. O que vale é a movimentação do ator em cena, de sua interação com os equipamentos eletrônicos, com as imagens que rolavam nos telões, com a plateia, e o seu trabalho de corpo. Mesmo com pouco texto, é super compreensível o que se quer passar. No palco, Fischer lida com questões profundas do mundo individualista em que vivemos. Medo, solidão, fracasso, insegurança, sonhos, entre outras questões, são mostrados de forma poética, com humor, o que permitiu uma perfeita sinergia com o público. As referências cinematográficas acontecem a todo o instante, seja no próprio figurino do ator, seja na sua forma de atuar como se estivesse em um filme mudo, seja nas muitas cenas de beijos projetadas no telão, enquanto ele aborda, dança e transa com a boneca inflável. A cena é ao mesmo tempo poética, engraçada e triste.
Um providencial karaokê em que o ator participa termina com a participação natural da plateia.
Há uma cena sensacional, quando ele declara seu amor por alguém que assistia ao espetáculo (no dia, pareceu-me que era um ator estrangeiro de uma peça integrante do festival) e o leva para o altar, com direito a troca de alianças (um enorme anel azul de plástico), enquanto outra pessoa do público segurava uma câmara do cenário, filmando a cerimônia, com transmissão ao vivo para nós do público. É divertida, mas também serve para refletir sobre as nossas dificuldades em tratar certos temas em público.
Gostei muito do que vi. 

domingo, 24 de agosto de 2014

CUARTETO DEL ALBA - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

Ainda sábado, dia 23 de agosto de 2014. Depois de ver Mundaréu, peça que estava em cartaz no Teatro II do CCBB, era vez de conferir mais um espetáculo da programação do Cena Contemporânea 2014. Não precisei sair correndo, pois a peça estava programada para o Teatro I do CCBB. Deu tempo até para fazer um rápido lanche no café do centro cultural. A movimentação de pessoas do mundo teatral brasiliense era grande no hall de acesso ao Teatro I. Todos para ver a montagem espanhola da Laurentzi Producciones S.L.. Pela primeira vez nesta edição não vi a sala de teatro completamente tomada, embora estivesse com ótimo público. A peça era Cuarteto del Alba, texto de Carlos Gil Zamora, direção de Lander Iglesias. Ao entrar, a iluminação do cenário que consistia de quatro cordas caindo nos quatro cantos do palco, com uma providencial fumaça cênica, despertou minha curiosidade. Assim que as luzes se apagaram, dois atores e duas atrizes entraram com seus respectivos bancos, se posicionando ao lado das cordas, cada um em seu canto. Começaram a jorrar, em uníssono, um discurso que se perpetuaria ao longo dos setenta minutos de duração do espetáculo. Nada foi traduzido deste embaralhar de palavras inicial. Mas, em seguida, cada um falou, ou melhor, discursou pausadamente, com legendagem simultânea em projeção estrategicamente colocado no alto do palco. A trama, se é que tem uma, é desenvolvida em capítulos. Uma verborragia é despejada no público, tocando em temas tão díspares, mas ao mesmo tempo tão próximos entre si, como política (o fantasma da era Franco na Espanha é uma constante nas últimas peças espanholas que tenho visto e nesta não foi diferente), a desilusão de um amor, a dependência química ou memórias de uma história não vivida. O texto é denso, é bom, mas a forma de executá-lo no palco me pareceu chata, enfadonha. São quatro pessoas em cena, mas que tem seus discursos próprios. Foram quatro monólogos longos, com certa poesia em alguns momentos, méritos para a iluminação de Iñaki Garcia.
Confesso que não gostei. Ao final, como muitos da plateia, nem mesmo aplaudi, quanto mais ficar de pé. Não sei se ainda estava sob o impacto de Mundaréu, peça que tinha visto poucas horas antes, mas esperava mais. Mas festival é assim mesmo. Não há como gostar de tudo.

MUNDARÉU - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

Quinto dia do Cena Contemporânea 2014. Mais um ingresso na mão para conferir outra peça integrante da programação do festival. Desta vez no Teatro II do CCBB. Camilo e André também tinham entrada para o mesmo espetáculo. Assistimos juntos. Como estava marcada para ter início às 19 horas, meia hora antes já estávamos na rampa de acesso ao teatro. A montagem era Mundaréu, textos de Plínio Marcos adaptados por Alexandre Ribondi, dirigido por Alice Stefânia e encenado pela companhia brasiliense Dois Tempos Cia de Teatro. A cena inicial aconteceu quando ainda estávamos na fila, do lado de fora, na grade bem perto de onde eu estava. Cena rápida, mas de uma energia fenomenal. Dois adolescentes em um embate para ver quem domina a área no submundo do crime. Duas performances fortes que nos deram o tom de como seria dentro do teatro. Já devidamente acomodados, mais uma vez a produção conta o número de cadeiras vazias e libera a venda de ingressos para quem esperava na bilheteria do CCBB. Teatro lotado. Três músicos posicionados do lado esquerdo do palco. Uma música pontua o seguimento da trama. O cenário nem tem grandes arroubos, todo em ferro, com estruturas que os atores empurravam entre uma cena e outra, bem dentro do clima tenso dos textos sempre atuais de Plínio Marcos. Tais estruturas serviam como cama, como esconderijo, como prisão, tudo dependia do que era retratado no momento. O adolescente é Querô (há um filme brasileiro que narra a história deste personagem), que fora atingido por um tiro dado por um policial. Ele agoniza enquanto um jornalista quer gravar seu depoimento para uma reportagem. Ao mesmo tempo, o grupo nos mostra a mãe de Querô, uma prostituta que tem seu filho retido pela cafetina Violeta logo que ele nasce e vai trabalhar com uma travesti, em prostíbulo definido pelo texto como um mocó. A história tem narrativa não linear, indo e vindo no tempo, fazendo um contraponto entre a história do adolescente Querô e sua mãe Dilma tentando economizar dinheiro para dar ao filho uma vida decente. Os atores se entregam nos seus papéis de forma contundente, passando uma verdade nua e crua. Alice Stefânia tem uma direção segura, sem firulas, onde o que importa é a verdade passada pelos atores em cena, em excelente trabalho corporal.
A cena das mortes de Dilma e Querô, que acontecem em tempos distintos na cronologia da história, mas que nós, o público, presenciamos acontecendo ao mesmo tempo no palco, tem um apelo tão forte junto ao público que algumas pessoas chegaram a se emocionar. Um jovem sentado na mesma fila em que eu estava chorava tanto, com resfolegares intensos, que tive a impressão que Davi Maia, um dos atores do grupo, ao dizer sua fala final, tentava achar, no público, de onde vinha aquele choro.
Além da força do grupo, as interpretações individuais são dignas de nota. Miguel Peixoto, além de fazer a travesti, é um dos músicos do trio que toca ao vivo durante os cerca de setenta minutos do espetáculo.
Helena Miranda dá um show fazendo dois papéis: a cafetina Violeta e a prostituta amiga de Dilma.
Ao sair do teatro, só ouvia elogios dentre aqueles que tiveram o privilégio de assistir àquela sessão. Já é uma das minhas peças favoritas do Cena. E olha que ainda faltam mais oito dias para terminar esta maratona de teatro.

sábado, 23 de agosto de 2014

PERDOA-ME POR ME TRAÍRES - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

Fabíola quis ir comigo ao teatro para ver Perdoa-me Por Me Traíres, terceira montagem do grupo brasiliense Novos Candangos, em cartaz no Teatro Goldoni e integrante da programação do Cena Contemporânea 2014. Ela não tinha ingresso. Chegamos uma hora antes do horário previsto para ter início a peça. Fabíola pegou a décima senha para a fila de espera. Às 19 horas, tocaram o tradicional sino do teatro, sinal de que a entrada estava liberada. Todos que tinham bilhete entraram e se acomodaram. Os nove atores já estavam em cena, fazendo uma performance com passos lentos, apenas com roupas íntimas, distribuindo olhares expressivos entre eles. Com todos assentados, a produção contou os lugares vagos, liberando a venda de ingressos para quem estava na fila de espera. Fabíola conseguiu entrar, sentando ao meu lado.
Perdoa-me por Me Traíres tem texto original de Nelson Rodrigues. O grupo adaptou a história de Glorinha, criada pelo seu tio Raul após a morte de sua mãe. Seu tio é apaixonado pela sobrinha e a cria sob rédea curta. Glorinha é levada a um prostíbulo por uma amiga de colégio e se encanta pelo que vê. Para se libertar do tio, Glorinha planeja uma forma de se livrar dele. Lendo o que escrevo, quem conhece Nelson Rodrigues pensa logo em um dramalhão clássico. No entanto, a trupe candanga levou este universo rodrigueano para o universo dos filmes, com elementos de Rocky Horror Picture Show, icônico filme lançado em 1975, dirigido por Jim Sharman. Assim, o drama teve pitadas de comédia e de terror, além de musical, pois o grupo tem a característica de inserir números musicais em suas montagens. O resultado foi inusitado. Teve alguns poucos que abandonaram o teatro antes de terminar a encenação, enquanto outros aplaudiram entusiasticamente ao final, com gritos de satisfação. Uma mulher desceu as escadas do Goldoni repetindo a frase "orgulho de ser brasiliense".
Os seguidores puristas de Nelson Rodrigues não gostariam desta adaptação, cheia de gritos, músicas, elementos alusivos a desenho animado, caras e bocas nas interpretações das personagens. Os que curtem uma ousadia nos palcos, adorariam.
Quanto a mim, digo que gostei, embora alguns pontos não me agradaram. Um deles foi a inserção das músicas. Enquanto na montagem anterior do grupo, Os Beatniks em A Gaivota, o elemento musical tenha funcionado tão bem, desta vez achei desnecessário, não agregando muito ao contexto. Também não gostei do tom dado às interpretações musicais. Outro ponto que achei desnecessário foi colocar a ótima atriz Tati Ramos como um cachorro na primeira parte da trama.
Por falar em partes, é visível a divisão da encenação em duas delas. A primeira, que se passa no prostíbulo, é muito focada na estética do cinema, enquanto na segunda parte, o drama teatral toma conta e tem performances ótimas de Xiquito Maciel e Tati Ramos.
Embora o público soltasse risadas após cada vez que a personagem vivida por Diego de Leon dizia a frase "tá na hora da homeopatia", na segunda parte da história, achei que isto quebrava o clima de drama que rolava no centro do palco. Esta performance me fez lembrar personagens de frase únicas de desenhos animados. Talvez isto seja proposital, quem sabe?
Mas os pontos de destaque positivo suplantam aqueles que dos quais não gostei. Começo por cenário e figurino, ambos concebidos por Cyntia Carla. Ela usou como inspiração tanto o filme Rock Horror Picture Show, quanto o que se usava na década de 1950, época em que foi escrito o texto original da peça. Também achei ótima a interpretação de Xiquito Maciel como o tio Raul. Mas o que mais me chamou a atenção foi a cena do aborto. Justamente a cena que divide a trama em duas partes. Várias referências são fundidas em uma cena original: O Massacre da Serra Elétrica, Rock Horror Picture Show, videoclipes, Irmãos Guimarães, Nelson Rodrigues, desenho animado, enfim, uma miscelânea da cultura pop. O único senão para esta cena fica por conta do cheiro de ketchup que toma conta do ar e fica até o final do espetáculo.
Foi a quarta peça que vi do Cena. Todas até aqui tinham um elemento de ousadia, de quebrar paradigmas. E esta não foi diferente.
O grupo voltará em cartaz no mesmo Teatro Goldoni a partir de 05 de setembro, primeiro final de semana após terminado o festival Cena Contemporânea. Para quem perdeu, nova oportunidade de ver este ousado e inusitado trabalho dos Novos Candangos.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

LA CHICA DE LA AGENCIA DE VIAJES NOS DIJO QUE HABÍA PISCINA EN EL APARTAMENTO - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

Quarta-feira, dia 21 de agosto de 2014, terceiro dia do Cena Contemporânea 2014. Ingresso na mão para conferir mais uma peça. Teatro Sesc Garagem, 21 horas. Fila enorme para esperar desistências ou sobras de convites. O teatro ficou muito cheio, com gente espalhada pelo chão em frente às cadeiras (acho que todos que estavam na fila de espera entraram). Muita expectativa para ver La chica de la agencia de viajes nos dijo que había piscina en el apartamento, montagem do grupo espanhol El Conde de Torrefiel. Em cena, nove atores, dos quais seis eram convidados da companhia. Estes convidados eram de Brasília. O texto gira em torno de uma temporada que duas amigas passam em uma praia espanhola. Para a encenação, o grupo utilizou performances coreografadas, projeção de texto narrativo, especialmente durante as performances, contando o que se passa com as duas amigas; além de discursos longos que retratam o bate papo destas amigas, quando as atrizes que as interpretam ficam posicionadas diagonalmente uma em frente à outra, sem se mover. Apenas uma fala em um microfone de pedestal, sem alterar a  voz, sem mover braços ou mesmo alterar as suas expressões faciais. Fica parecendo um tipo de não-interpretação (o que de certa forma dialogava com o que vi na noite anterior no espetáculo Pichet Klunchun and Myself, no CCBB), onde o que mais importa é o texto.
A projeção da narrativa se dá em português, enquanto durante as falas das duas atrizes, Adriana Lodi, em off, faz a tradução simultânea (em texto previamente elaborado). Ficou parecendo aquelas transmissões da entrega do Oscar, com a voz de Lodi se sobrepondo às vozes das atrizes. A voz em off também seguia o tom monocórdio dos discursos. Confesso que este artifício me prejudicou em prestar atenção no texto, pois tinha momentos em que eu tentava seguir a narrativa em português, mas me via tentando entender o espanhol das atrizes. E isto piorava quando havia, no mesmo momento, alguma música da trilha sonora.
O texto é ácido, especialmente com relação à cultura pop que, segundo eles, esmagou qualquer possibilidade de a população, especialmente os mais jovens, de entender o mundo a partir de sua história. O Século XX é classificado pelo grupo como o Século da Merda Bonita. Uma frase chave deste pensamento é projetada quase ao fim do espetáculo: Guernica é um quadro famoso. Ou seja, hoje os espanhóis e os turistas que visitam a Espanha não sabem exatamente o que foi a Guernica. É apenas um quadro pintado por Picasso que ganhou fama mundial. Poucos sabem que se trata de uma batalha durante a guerra civil espanhola.
O texto é falado na forma de um discurso longo, cheio de referências ao mundo pop, particularmente do universo europeu. Citar o livro 2666, obra póstuma do escritor chileno Roberto Bolaño, dizendo que quem o leu entenderá o que a atriz diz a um dado momento, é bem provocativo. Fiz questão de olhar para os lados. Muita gente fazia cara de paisagem, pois muitos ali não sabiam quem era este escritor. Fiquei tentando imaginar qual seria a reação do público de língua espanhola ao ser provocado desta forma quando assistiram La Chica...
Três coreografias pontuam a aventura das amigas. Os atores convidados participam destas coreografias, sem nenhuma fala. A primeira é uma aula de tai chi chuan, quando as amigas decidem viajar juntas. A segunda é em um show de heavy metal na praia onde elas passam as férias e o que acontece depois dele, enquanto a terceira é uma festa tecno na mesma praia, também com participação das duas amigas.
A primeira parte da coreografia dos metaleiros é hilária, mas representa bem o comportamento dos metaleiros e o que acontece no mundinho deles, com um eterno bater de cabeças e rodopios das vastas cabeleiras. A segunda parte, com um bunda lelelê coletivo, no qual as bundas de fora pareciam os rostos das pessoas, é um "soco" na cara da plateia, com direito a "risadinhas" ao vivo. No mínimo, causou um certo desconforto. Alguns riram, outros mexeram nas cadeiras, outros suspiram e outros balançaram a cabeça. O nu da terceira coreografia não choca tanto. Todos ficam completamente sem roupa em cena, formando uma massa humana disforme, movida ao som do tecno e das drogas. Mais uma frase de impacto projetada no telão resume tudo: a cocaína é pop.
Em um dos discursos, a amiga diz para outra uma coisa sensacional: freiras e metaleiros eram os únicos integrantes de grupos (ou tribos, como dizemos por aqui) que se vestem de forma igual tanto no verão quanto no inverno. Adorei isto.
Ao final, o público estava visivelmente dividido. Parte aplaudia com entusiasmo, outros seguiam o protocolo com palmas frias e outra parte permanecia sentada. Fiquei no último grupo, sentado, sem saber direito se tinha ou não gostado. E assim fiquei até chegar em casa, quando pude refletir sobre tudo o que vi. Tirei a conclusão que tinha gostado, com exceção da sobreposição das falas ao vivo e em off (embora entenda que esta talvez seria a melhor forma para o público brasileiro entender o texto, já que as falas em espanhol eram longas, rápidas, cheias de gírias e referências europeias, não cabendo traduções simultâneas com aparelhos nos ouvidos).
A estética narrativa misturando projeção, coreografia e falas discursivas, sem uma interpretação clássica mostra que o mundo teatral pulsa, e muito, neste Século XXI. Espero que o público também consiga seguir este pulsar.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

PICHET KLUNCHUN AND MYSELF - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

Segundo dia do Festival de Teatro Internacional de Brasília Cena Contemporânea 2014. O espetáculo para o qual tinha ingresso era Pichet Klunchun and Myself, em cartaz no Teatro I do CCBB. Uma amiga tentou comprar entrada para a mesma sessão um dia antes, mas não conseguiu. Ingressos esgotados para as duas únicas apresentações em Brasília. A mesma informação estava na edição de terça-feira, 20/08/2014, do Correio Braziliense.
Como fui direto do trabalho, cheguei às 19:45 horas no CCBB, onde encontrei Hélida G., que tinha duas entradas para o espetáculo. Ela precisava de mais um. Antes de lancharmos no café ao lado do teatro, fomos à bilheteria para ver se alguém tinha desistido. Para nossa surpresa, a produção do Cena tinha acabado de devolver ingressos destinados aos patrocinadores. Compramos o ingresso que ela tanto queria. Era hora de lanchar.
Eu tinha poucas informações sobre o que veríamos. Sabia que era um espetáculo de dança, mas ao ler a sinopse no livreto do festival, percebi que não seria bem um balé com coreografia. Seria uma espécie de bate papo. Compramos nosso lanche, sentamos em uma das mesas do lado de fora, aguardando as outras duas pessoas que nos acompanhariam, Fabíola e Lana.
Ao lado da entrada do Teatro I montaram uma mesa para entregar ao público um aparelho igual aos usados em conferências com tradução simultânea. Para pegá-lo, bastava entregar um documento que seria devolvido ao final da sessão.
Antes de entrar, perguntei a uma pessoa da produção do Cena o motivo do aparelho. O espetáculo seria todo falado em inglês. Resolvi entrar apenas com meus ouvidos. E foi muito tranquilo.
Houve um pequeno atraso, pouco mais do que dez minutos, para o início. Assim que soou o terceiro sinal, houve uma movimentação para troca de lugares, pois muitos assentos ficaram vazios. Creio que os convites distribuídos pelos patrocinadores não foram utilizados pelos contemplados.
No palco estavam duas cadeiras posicionadas uma em frente à outra em uma distância de uns três metros entre elas. Na cadeira da esquerda se sentou Pichet Klunchun, um bailarino tailandês, que estava descalço. Na cadeira da direita, o bailarino, coreógrafo e diretor francês Jérôme Bel, que tinha um notebook nas mãos. Assim que os dois se acomodaram em suas respectivas cadeiras, teve início um diálogo muito interessante, que foi crescendo ao longo dos 105 minutos de duração do espetáculo. Era uma espécie de entrevista na qual Jérôme conduzia as perguntas. Klunchun é um especialista em Khon, dança tradicional tailandesa. Jérôme perguntou o que é a dança, como ela começou e suas principais características. Klunchun foi mostrando, pacientemente, os passos mais marcantes do Khon, assim como seus principais personagens: homem, mulher, demônio e macaco. E ver o bailarino tailandês executar a coreografia passo a passo, gesto a gesto, com a devida explicação de cada um deles, foi uma das coisas que mais gostei no espetáculo. Quando o entrevistado vira o entrevistador, as performances de Jérôme Bel no palco são ótimas, demonstrando os motivos pelos quais ele está longe de ser uma unanimidade no mundo da dança. Suas peças não tem coreografias mirabolantes. Ele coloca no palco ações que qualquer um que o assiste poderia executar.
E neste interessante embate entre a tradição e o contemporâneo, entre o Ocidente e o Oriente, ganhou quem estava assistindo. O bate papo foi ótimo para provocar reflexões sobre a importância de se manter a tradição, mas também de inovar, de trazer algo diferente para chacoalhar a mesmice que impera no mundo.
Entre os muitos bons momentos, destaco dois:
1) Klunchun interpretando uma mulher quando ela recebe a notícia de que seu marido morrera em uma batalha. Os movimentos mínimos de seu corpo transmitiram toda a tristeza, incluindo um delicado choro.
2) Jérôme interpretando e dublando a canção Killing me softly with his song. Foi divertido, mas como uma possibilidade de se pensar a morte.
E a encenação da morte foi um dos temas debatidos entre eles, assim como a nudez em cena, algo normal para o francês, mas cheio de pudores para o tailandês.
Espetáculo primoroso.

CONSELHO DE CLASSE - CENA CONTEMPORÂNEA 2014

Começou a 15ª edição do Cena Contemporânea. Comprei ingressos para vários espetáculos. Iniciei a maratona pela peça de estreia da edição 2014 deste ótimo festival de teatro de Brasília.
Terça-feira, 20 de agosto. A peça estava marcada para ter início às 21 horas no Teatro Funarte Plínio Marcos. O estacionamento ao lado do Complexo da Funarte é amplo, sempre com tranquilidade para encontrar vagas. Mesmo assim, fui cedo para lá. Esta foi minha sorte, pois não contava com um estacionamento repleto de carros, a esmagadora maioria de torcedores do Vasco que foram ver um jogo válido pelo campeonato da segunda divisão de futebol que aconteceria no Estádio Nacional Mané Garrincha. Consegui uma vaga mais longe do local onde costumo parar.
Em frente ao teatro, cujas grades estavam fechadas impedindo o acesso ao pequeno hall do local, duas filas se formavam. A da esquerda era de quem tinha ingresso, onde logo me posicionei, enquanto a da direita era daqueles que ainda tentariam comprar entrada para a sessão da noite. Vários torcedores vascaínos passavam por lá e estranhavam aquele público em duas filas. Presenciei uma turma deles pensando que ali era a entrada do estádio.
Na medida em que o tempo passava, as filas cresciam, tanto em linha reta para trás quanto para os lados. Era tanta gente que conhecia tanta gente que alguns bolinhos de pessoas se formavam em determinados pontos da fila. Não sei o motivo, mas só abriram as grades e liberaram a nossa entrada quando os ponteiros do relógio já anunciavam ter passado do horário previsto para o início da peça. A saudação gravada do festival foi ao ar ainda com a maioria das pessoas do lado de fora. Houve uma considerável demora para acomodar todo mundo, inclusive aqueles que estavam sem ingresso. Tive a impressão que todos que estavam sem entrada tiverem êxito e entraram. O teatro ficou completamente lotado para ver Conselho de Classe, uma das peças que celebrou os vinte e cinco anos de carreira da Cia dos Atores, do Rio de Janeiro. A lotação completa era bom sinal, pois mostrava que o público estava ávido por teatro, ávido por celebrar o festival, mas ao mesmo tempo, a mesma lotação me indicava que o calor seria forte ali dentro. E foi.
O espetáculo começou com cerca de quarenta minutos de atraso.
O cenário mostrava uma escola com problemas visíveis de manutenção, ficando iluminado desde a entrada do público.
O texto de Jô Bilac é contundente (adjetivo que "roubei" de Fernando Guimarães), escancarando as mazelas da educação no Brasil, seja na questão do aspecto físico da escola, onde faltava até mesmo água potável, seja pela remuneração ridícula que um professor da rede pública recebe do poder público, no caso, do Governo Estadual do Rio de Janeiro. E ainda há a discussão sobre o papel da escola junto à comunidade, a falta de atualidade na gestão escolar e o conflito de ideologias entre os professores que formam o corpo docente daquela unidade.
São quatro atores que interpretam as professoras durante um conselho de classe perto do final do ano. São quatro homens que interpretam quatro mulheres, mas as diretoras Bel Garcia e Susana Ribeiro preferiram deixá-los com figurino masculino, sem alterações no modo de falar e com pouco gestual feminino. Soou estranho em um primeiro momento, mas esta forma deixou as questões meramente masculinas/femininas devidamente distanciadas das discussões centrais.
Ainda há mais um ator em cena interpretando o diretor substituto que chega como enviado da Secretaria Estadual de Educação para dirigir o conselho de classe e colocar ordem na casa, após um incidente que ocorrera com a diretora titular.
Em cena, o calor era de matar, e, na plateia, o desconforto das cadeiras e a falta de ar condicionado no teatro foram perfeitos, mesmo que de forma não proposital, para a sinergia com o cenário e para uma melhor aproximação com o que se passava na quadra da escola.
Os atores estão muito bem, inclusive o estrangeiro Thierry Trémouroux, mesmo com certa dificuldade em entender algumas frases que ele falava, especialmente quando não estava virado para a plateia. Quem estava nas últimas fileiras da sala tiveram, nitidamente, tal dificuldade. Um cara que estava sentado ao meu lado me perguntou por mais de uma vez o que o ator tinha acado de falar.
Embora os desempenhos individuais sejam dignos de notas elogiosas, o que prevalece durante toda a encenação é a força de grupo. O coletivo é muito forte neste espetáculo. Um ponto alto são os embates vivenciados pelas personagens, o que possibilita interessantes duelos entre os atores.
Pelo que escrevi até aqui, pode parecer, para quem está lendo, que eu gostei da peça, mas há uma questão que me incomodou muito e jogou por terra, na minha visão, a discussão profunda que há no texto. Foi a opção por dar um tom de comédia no desenvolvimento da história. Claro que ri de várias situações, mas creio que esta escolha atrapalhou bastante a reflexão sobre o texto. As professoras ficaram no limiar do estereótipo do funcionário público que não tem compromisso com nada, ou ao contrário, daquele que é engajado politicamente e quer mudar o mundo a partir de ações na comunidade. Não é à toa que quem faz este papel é o único que não tem um tom burlesco na interpretação. No caso a Professora Mabel, vivida por Trémouroux.
Muitos sabem que professores, especialmente os da rede pública de ensino, fazem bicos, são sacoleiros, como a Professora Célia da peça, mas a forma como esta situação é mostrada me soou um tanto quanto excessiva. Ouvi uma pessoa comentando na saída que a mãe dela era professora e que, com certeza, não gostaria de ser retratada como aquela que passa hidratante nas pernas ou lixa a sola dos pés durante uma reunião do conselho de classes da escola onde trabalha. Realmente esta provocou muitas risadas na plateia, mas era totalmente dispensável no contexto.
Ao final da apresentação, as palmas calorosas e os gritos de vivas mostraram-me que a maioria gostou do que presenciou.
Eu saí com a sensação que poderia ter sido melhor, que a direção errou a mão.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A DÉCIMA SEGUNDA NOITE - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO


Enfim, consegui ler mais um livro neste 2014. Aproveitei o voo Brasília-Belo Horizonte para ler, em uma sentada, o ótimo A Décima Segunda Noite, escrito por Luís Fernando Veríssimo para a coleção Devorando Shakespeare da Editora Objetiva. Lançamento de 2006, com 152 páginas. Tinha este livro em minha estante desde o ano de lançamento, mas ficou no esquecimento. Leitura fácil, agradável, prazerosa. Veríssimo faz uma divertida releitura da comédia de erros Noite de Reis escrita pelo inglês William Shakespeare para o teatro. Veríssimo ambienta sua versão em Paris, mas a recheia de personagens brasileiros, com menções, mesmo que distante, dos exilados da época da ditadura, e de contrabando de pedras preciosas dentro de imagens de santos. Um salão de beleza com decoração brasileira no qual um papagaio pintado de verde e amarelo é o narrador de toda a história de amores impossíveis que vão se formando ao longo das confusões que os personagens aprontam. Todos os estereótipos de brasileiros estão presentes: samba, jeitinho, amizades com pessoas ligadas ao poder, alegria, beleza, malandragem, praia, sol, palmeiras, comidinhas típicas, festas. Tudo com muito humor. Quando vi, o avião estava pousando e eu acabando de ler a última página. Gostei muito.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

CONFRARIA VINUS VIVUS - 89ª REUNIÃO

Mais uma reunião da Confraria Vinus Vivus aconteceu no dia 11 de agosto de 2014, a de número 89. Mais uma vez na casa da confrade Vera, quando o tema eram vinhos franceses. O confrade Leo Ladeira não pode se fazer presente, sendo substituído por Kadu. Eis os vinhos da noite.

Vinho 1 – Mas de Daumas Gassac


Safra: 2009.
Álcool: 13%.
Casta: são vinte e uma castas na elaboração do vinho, sendo que 97% é composto por cabernet sauvignon, merlot, cabernet franc, pinot noir e tannat.
Produtor: Mas de Daumas.
Região: Languedoc-Roussillon, França.
Cor: rubi, rubi.
Aromas: estábulo, aceto balsâmico, acidez doce, erva, mentolado, tomilho, folha verde amassada, vegetal, saco de açúcar, dama da noite.
Boca: não é pesado, mas encorpado, seca atrás da língua, acidez e taninos equilibrados, nada agressivos.
Estágio: sem informação.
Importador: Mistral.
Valor: R$ 318,00.
Observação: maceração longa. Vinhedos com 37 anos de idade. A colheita de 2009 foi considerada a melhor dos últimos 40 anos. Foi o preferido de Keller e Vera.

Vinho 2 – v.i.t.


Safra: 2010.
Álcool: 15,5%.
Casta: 65% grenache e 35% shiraz.
Produtor: Domaine Bila-Haut.
Região: Côtes Du Roussillon, França.
Cor: rubi, com leve toques violáceos.
Aromas: doce, violeta, torrefação, bala de leite, café, fruta vermelha cristalizada.
Boca: acidez presente, mas tem uma leve doçura no paladar, Biotônico Fontoura, chocolate amargo.
Estágio: sem informação.
Importador: Mistral.
Valor: R$ 458,00.
Observação: vinhedos da grenache têm, em média, 70 anos de idade. O preferido da noite por Leo Soares, Kadu e Bruno.

Vinho 3 – La Tyre


Safra: 2001.
Álcool: 14,5%.
Casta: 100% tannat.
Produtor: Montus.
Região: Mandivan, França. (berço da casta tannat)
Cor: negra, com evolução na unha.
Aromas: ferro, ferrugem, couro, mofado, palha seca.
Boca: taninos presentes, mas não é rugoso, evolui muito bem, longo no paladar, pede comida.
Estágio: fermentado em grandes tonéis de madeira a 28º C, com maceração longa (seis semanas), estagiando de 14 a 16 meses em barricas de carvalho de 110 litros.
Importador: Decanter.
Valor: R$ 770,00.
Observação: o campeão da degustação, sendo o preferido por Cláudia, Fernanda, Jarbas, Abílio e Marquinho.

Após a degustação, foi servido o jantar, cuja entrada foi uma salada de folhas verdes, nozes, queijos, torrada e azeite Andorinha em spray. O prato principal foi um cassoulet, enquanto a sobremesa uma torta húngara (chocolate amargo), muito apreciada em Salvador, Bahia, de onde a iguaria veio diretamente para este jantar.
Para a harmonização com os pratos do banquete, utilizamos os vinhos da degustação e ainda:
Château de La Grille – elaborado com a casta cabernet franc, produzido na região de Chinon, França, com 13% de álcool, safra 2003.
Loosen “Dr. L” – vinho branco alemão, da região de Mosel, 100% riesling, com 12% de álcool, safra 2013.



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