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quarta-feira, 24 de junho de 2009

DÚVIDA CRUEL

Esther se olhava no espelho. O rosto estava limpo, lindo. Os cabelos, presos, também tinham um ótimo aspecto. Era sua primeira gravidez e não havia sentido grandes mudanças em sua pele. Já estava em seu nono mês e a previsão era a criança nascer nos próximos dez dias. Ficou ali parada, com a mão na barriga, numa conexão direta com seu bebê. Ela não sabia o sexo. Preferiu não saber, embora a sua médica tenha insistido muito em falar. Sua dúvida maior não era sobre o sexo, mas sim sobre a cor. E raça não era possível verificar no ultrassom.
Esta era sua grande dúvida.
Esther se casou com seu primeiro e único namorado, um homem negro nove anos mais velho do que ela. Tinha uma vidinha normal de dona de casa em uma típica cidade do interior de Minas Gerais, com cerca de dez mil habitantes.
A rotina fazia parte de sua vida: arrumava casa, lavava roupa, passava a mesma roupa, fazia comida, esperava o marido para almoçar e para jantar. Gostava de esportes, de natação. O marido achava ruim ela ir ao único clube da cidade para nadar. Por isso, não ia.
Aprendera a arte da natação ainda criança, quando seus pais moraram em Belo Horizonte. Frequentava o Minas Tênis Clube na unidade de Lourdes. Chegou a competir em algumas provas, mas logo teve que abandonar tudo, pois seu pai fora promovido e aceitara o desafio de conduzir uma unidade da empresa alemã para a qual trabalhava no interior do Estado. Era filha única e foram morar afastados do centro urbano. Não havia amiguinhas para brincar. A vida se tornou um tédio e só pensava em ficar adulta logo para largar tudo e voltar para Belo Horizonte, voltar para a natação. Na nova cidade, somente podia nadar aos domingos, quando seu pai a levava para o clube da cidade.
E foi no clube, já com dezesseis anos, que conheceu Adão, o Negão, como era chamado carinhosamente por todos. Adão era homem sério, trabalhava na mesma empresa que o pai e tinha um bom relacionamento com os colegas de serviço. Esther, no auge da formosura, lançou vários olhares lânguidos para o Negão. Ele não correspondia, pois temia a reação do pai dela. Afinal, tinha 25 anos, engenheiro mecânico, evangélico e se preparava para ser pastor. Não tinha tempo para namoricos com a filha do chefe.
Esther, encarnando uma autêntica personagem rodriguiana, fez de tudo para acender o vulcão do moço. E conseguiu. Em três anos, namorou de mãos dadas, noivou, transou pela primeira vez embriagando o noivo e se casou. O seu inferno estaria começando.
Adão se mostrou mais preocupado com o templo, no qual já fora nomeado pastor, do que com a vida conjugal. Era muito ciumento, não deixando Esther ir ao clube sozinha. Pelo menos moravam em uma casa a três quadras do clube. Esther ficava no passeio todas as manhãs, vendo o movimento do ir e vir dos frequentadores do clube.
Esther ficou triste. Esther ficou doente. Esther ficou grávida.
Foi uma alegria momentânea no lar. Seus pais adorando a ideia de serem avós, Adão agradecendo a graça de ser pai pela primeira vez e Esther penando para descobrir quem era o pai.
Enquanto ficava no passeio em frente a sua casa, Esther viu um homem lindo, de feições asiáticas passar. Nunca tinha visto ele por ali. Ficou intrigada. Em mais três dias, o asiático passou e sempre a cumprimentava com a cabeça. Ela se encantou. Era o homem de sua vida, pensou.
Mas e Adão? Adão foi o homem da minha primeira libertação, este será o da minha segunda, pensava.
Na quarta vez em que ele passou, Esther respondeu ao seu cumprimento. Ele parou, se apresentou e perguntou se morava ali. Esther disse que sim e emendou várias perguntas. Ele se chamava Torino, estava de passagem na cidade, pois fazia um trabalho temporário na mesma empresa de seu pai. Conhecia o pai de Esther e também Adão. As manhãs eram livres e ele frequentava o clube para nadar, pois era competidor. Sua prova principal era o 100 metros nado costas. Os olhos de Esther brilharam muito. Perguntou quanto tempo ele ficaria na cidade e descobriu que ela tinha apenas mais uma semana para agir.
Imaginava fugindo com Torino. Ele não se interessou por ela. Afinal, era casada com um pastor evangélico e colega de trabalho, mesmo que temporariamente. Mas Esther tinha suas armas e seus encantos.
Armou uma casinha de caboclo para o asiático. Ele caiu na armadilha e tiveram uma linda manhã de amor. Torino, depois de cair em si, se desesperou e foi embora correndo. Naquela mesma noite, depois de um hiato de semanas, como ficara comum na relação dos dois, Adão e Esther transaram loucamente.
Esther estava louca de esperanças de ver Torino no dia seguinte. De ele lhe confessar que queria levá-la para sempre daquela cidade, tirá-la daquela vida, de rodar o mundo com ela. Triste ilusão. Esther nunca mais o viu.
Algumas semanas depois, sua menstruação não veio. Era regular, igual relógio, nunca falhara. Foi fazer o exame e deu positivo. Grávida. Um misto de alegria e terror passou por sua cabeça. Quem era o pai?
A gravidez foi toda com esta preocupação interna. Externamente, Esther conseguia aparentar contentamento. Sempre tinha a preocupação de não saber o sexo. Queria que o suspense que ela vivia em relação às características físicas de seu filho fosse compartilhado pelos demais em relação ao sexo do bebê.
Muitas manhãs, Esther se postava em frente ao portão de sua casa, aguardando Torino passar. Não podia perguntar a Adão ou ao seu pai sobre ele, pois não saberia explicar que o conhecia.
Nove meses de agonia para Esther.
16 de outubro, sexta-feira, noite. Esther está na cama e sente um molhado descendo por suas pernas. A bolsa rompera. Chama Adão e ele a leva para o hospital municipal, ligando antes para a médica e para os pais dela.
Esther tem muitas contrações e urra de dor, chora, puxa os cabelos. Xinga Adão e todos que estão perto. Grita o nome de Torino, mas ao perceber, grita mais cem nomes de homens e mulheres, como se estivesse enlouquecida.
Os enfermeiros dão remédios para acalmá-la. O parto será normal, diz a enfermeira-chefe. Ela é preparada e segue para a sala de parto. Perguntam se quer alguém com ela. Ela diz não. Seu desejo é obedecido.
Muito esforço e suor são gastos e um choro corta o ar. A criança dá sinal de vida. A felicidade toma conta do ar. É uma menina, uma linda menina, dizem os enfermeiros. Como podem afirmar que é linda a menina, se todos os bebês são iguais e horrorosos, pensa Esther. Ela está nervosa, quer saber a cor, como é o formato dos olhos, mas só falam que a menina é linda. Se enche de coragem e pergunta: "Qual a cor da minha filha?". A enfermeira, com a menina no colo, lhe mostra e diz: "É branquinha, igual a mãe, e tem os olhinhos puxados e o cabelo preto e lisinho".
Esther desmaiou. Corre corre na sala. Medem a pulsação, a temperatura. Ela vai ficando gelada, com o rosto sem vida. Os batimentos cardíacos vão ficando lentos. O corre corre aumenta. Usam o desfibrilador. Ela dá sinais de que se mantém viva. O susto passa para ela e para todos.
Ela só pensa: e agora? Ela é levada para o quarto e vai amamentar a menina pela primeira vez. Adão chega neste momento. Esther está lívida. Adão sorri para ela, vê a menina e diz que precisa conversar. Esther fica transparente. Calmamente, ele diz que aquele nascimento era uma dádiva divina. Ele nunca contara, mas não podia ter filhos. Tinha tido uma doença na infância que o tornara estéril. Fez alguns tratamentos antes de conhecer Esther, sem sucesso, mas nunca teve coragem de contar a ninguém. Sempre orou muito para que o problema se revertesse e que esta graça tinha acabado de presenciar. Esperou o nascimento para ter a certeza de que era pai. Esther passou de transparente para bege. Ficou atônita. Será que ele não via que a menina era de pai asiático?
Adão pegou a menia no colo e disse: "Você é linda e se chamará Sara. Sua mãe é Esther, eu sou Adão e Sara será seu nome."
Ele se vira para Esther e diz bem alto: "Vamos celebrar, vamos comemorar a chegada de minha filha." E, baixinho no ouvido de Esther, ele susurra: "Seu inferno está só começando".

2 comentários:

  1. Hahaha.
    QUe maldade heim Noel.
    Persegui seu texto até o final com produnfo interesse.
    COitada da Esther...
    Bjs

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  2. C'est la vie, diriam os franceses...

    Bjs.

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