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terça-feira, 2 de junho de 2009

SOLAR

Mark chegou em casa apressado. Jogou a bolsa em cima do sofá e correu para o atelier improvisado que havia montado em um dos quartos do apartamento. Era aquele provisório que vira eterno. A pressa se justificava, pois enquanto andava sem rumo pelo parque próximo a sua casa teve uma inspiração. Justamente a inspiração que lhe faltava havia meses e não conseguia terminar o quadro. Entrou no quarto, mirou para a tela disposta propositalmente entortada no cavalete, pegou o pincel que estava em cima de uma mesinha que servia de aparador de qualquer coisa. Ele não era muito organizado. O quarto era todo desarrumado, mas naquele solo sagrado ninguém pisava sem sua permissão. E permissão nunca era dada para ninguém. Apenas o azul preenchia uma parte da tela. Apenas o azul, sem forma. Se postou em frente à tela e fechou os olhos. Como se possuído por um espírito, começou a mexer os olhos de um lado para o outro. Freneticamente pincelou de cores alegres, vibrantes, aquele azul profundo. O amarelo despontou como a cor dominante. Nenhuma forma nascia na tela. Apenas cores em cima de cores.
E dá-lhe amarelo!
Depois de duas horas pincelando cores, trocando pincéis, Mark parou e prestou atenção no que pintara. Era uma tela plena de cores, sem nenhum formato. Pensou que já tinha visto aquilo em algum lugar, em alguma exposição, mas não se recordava. Pairou uma dúvida no ar. E se ele estivesse plagiando alguém? Sai fora pensamento, murmura em voz baixa.
Ficou em pé, inerte, fitando sua obra. Que nome dar? A razão de se preocupar com um nome fazia sentido, pois ele detestava exposições onde, geralmente, no lugar do nome de um quadro aparece a expressão "Sem Título". O nome tinha que ter uma relação direta com o quadro. Porque não Amarelo Dominante? Muito pobre, parece coisa de genética, pensou logo. Saiu do quarto para pensar um pouco. Foi até a cozinha e pegou uma água gelada. A garganta estava seca. Sorveu a água como quem bebe um néctar dos deuses. Olhou para fora. O dia estava lindo. Saiu de novo. Foi sentar no banco do jardim de seu prédio. Barulho de crianças brincando no playground e cães passeando com seus donos no mesmo espaço de convívio social do edifício. Que nome? Que nome? pensava sem parar.
Voltou para o atelier. Ficou vendo seu quadro, namorando seu quadro, querendo que o quadro, como um espelho mágico da história da Branca de Neve, se apresentasse. Algo como: "Prazer, me chamo..." Mas a tela não se mexia, não lhe dava pistas.
O telefone toca. Sai para atender. Era a secretária de seu terapeuta, confirmando o horário para o dia seguinte. Ele arrisca perguntar a ela que nome daria para um quadro com muitas cores, sem nenhuma figura e com o amarelo predominando. Assustada, a secretária do outro lado da linha lhe responde que tinha muita ligação a fazer e que não poderia ajudar. Ele desliga rindo, imaginando os pensamentos da jovem, achando que ele havia pirado de vez.
Mark queria apenas um nome. Será que é difícil assim quando os pais devem decidir o nome da criança que está para nascer? Decididamente não, pois há dezenas de livros e sites na internet com sugestões de nomes, com seus significados.
Internet. É isto. Ligou seu computador e colocou a palavra cores no Google. O resultado da pesquisa, como já esperava, foi um zilhão de informações. Nada ajudou. Frustração no ar.
O dia já acabava. Uma luz dourada entrou no apartamento, reflexo do por do sol. Aquela luz lhe deu uma outra luz. A luz para o nome. Solar, sua obra se chamaria Solar. O amarelo nada mais era do que a representação da luz do sol no nosso mundo colorido, imaginou Mark. Solar! gritou para a tela em sua frente. Você é Solar. Sua primeira tela se chama Solar. Sou um criador, pensava ele, abraçando a tela sem se dar conta de que a tinta ainda fresca sujava sua camisa e desfigurava a tela.
Novamente em transe, Mark começa a beijar a tela e a interação entre ele e as cores se completava. Não se podia mais ver a obra completada há pouco. Agora a camisa tem a maior quantidade de tinta, assim como o rosto, os lábios, o cabelo, enfim, todo seu corpo. Com o dedo molhado de tinta, escreve na tela a palavra SOLAR. Continua a espalhar a tinta por todo o atelier. Não consegue parar, a tela caíra do cavalete. No chão, virada para cima, a palavra solar era visível num mundo de cores, como se fosse uma placa de néon ao contrário. A palavra solar não tinha luz, mas o seu redor irradiava uma luz diferente. Mark não percebia mais o que fazia. Ria, ria muito e jogava a tinta para todos os lados. Pintava seu corpo. Teve sede. Bebeu a tinta, um, dois, três, vários goles. Poucos minutos depois começou a sentir um enjoo. Ficou tonto, a respiração lhe faltava. Deitado estava, deitado ficou.
Quatro dias depois, por causa do mau cheiro, arrombaram a porta do apartamento e encontraram Mark sem vida no chão, apenas com um vômito seco amarelado ao seu lado. A tela foi embrulhada com todas as demais tralhas de Mark e enviada para seu único parente, um primo distante. O tal primo deu a tela para uma vizinha para vender. A senhora levou a tela para uma feira e, na primeira tentativa, a vendeu para um senhor elegante. Este senhor era um colecionador de arte. A tela ganhava um local para ficar exposta. Ganhou admiradores. Foi objeto de estudos acadêmicos e se valorizou. Cifras milionárias foram oferecidas por ela. Até que o senhor elegante morreu e deixou sua coleção para o principal museu da cidade. A tela ganhou um local especial. Na sua identificação constava:
Nome: Solar
Autor: Desconhecido
Ano: Sem informação
A tela só tinha um nome. O nome que seu criador lhe dera e que lhe marcara para sempre. Seu criador já não mais existia. Nunca ninguém saberia quem a criou. Nunca.

3 comentários:

  1. Noel,
    Pois ao contrário de quem escreveu sobre seu post ficional, eu gosto muito dos seus escritos nesse gênero.
    Parabéns!
    Adorei a história de Mark. Muito criativa e bem escrita.
    Bjs

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  2. Adorei! Continuo achando, e agora com mais convicção, que você deve escrever ficção sempre. O conto é muito legal.
    Beijos,
    Kitty

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  3. Os comentários de Pek e Kitty me incentivam a escrever mais.
    Bjs aos dois.

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