Depois de um longo dia de trabalho, resolvo ir para casa e ver um filme. O escolhido é O Martírio de Joana D'Arc (La Passion de Jeanne D'Arc), de Carl Th. Dreyer, produção francesa de 1928. Já tem duas décadas que vi este filme na Sala Humberto Mauro no Palácio das Artes, Belo Horizonte, em uma das mostras interessantes que costumava lá ter lugar na década de oitenta. Lembro-me que uma cena me impressionou muito, exatamente a queima da heroína/santa na fogueira. Não pelos efeitos especiais, mas pela expressão facial da atriz Renné Falconetti. Estava acompanhado de uma amiga que à medida que o fogo ardia na fogueira, ela sentia cada vez mais calor, chegando a se abanar estabanadamente com a saia que usava, deixando à mostra sua calcinha, fato que desconcertou um senhor que sentava na mesma fila onde estávamos. Fiquei com a cena na memória e não me lembrava mais de nada do filme. Hoje, com calma, observei a força da direção de Dreyer. Depois de ver o filme, vi os extras do dvd (Magnus Opus), incluindo textos e biografias do diretor e da atriz, além de uma entrevista com a filha da atriz. Esta cópia é proveniente da versão restaurada pela Cinemateca Francesa em 1985, quando uma nova trilha sonora foi introduzida. Segundo o preâmbulo, esta versão chega o mais perto possível da original, que se perdeu consumida pelo fogo. Pauline Kael, famosa crítica de cinema americana, escreveu que a interpretação de Falconetti é a mais impressionante do cinema mundial. E olha que estamos falando de um filme mudo, de 1928, ou seja, um filme com 81 anos de idade.
O filme se concentra em um único dia, quando do julgamento de Joana D'Arc, e se baseia nos registros oficiais deste julgamento. O diretor concentra a filmagem, na maior parte do tempo, nos rostos dos atores e, segundo li, nenhum deles usou maquiagem. A força da história está na forte interpretação facial. As expressões dos religiosos mostram raiva, perversidade, maldade, superioridade, falsidade, enquanto a de Falconetti é a expressão máxima do sofrimento. O olhar da atriz é algo impressionante. Depois de rever, percebo que a cena da fogueira, por ser previsível e ser um fato histórico conhecido, não é a mais impactante, como ficou na minha memória desde os idos da década de oitenta. A cena na sala de tortura e quando cortam o cabelo de Joana são mais densas e emocionantes. Fiquei em dúvida como o diretor conseguiu tirar da atriz tanta dor e sofrimento. Li que muitos diziam que Dreyer obrigava Falconetti a ficar ajoelhada em pedras para extrair o máximo de sofrimento e dor. Ao ver a entrevista da filha de Falconetti, que seguiu a carreira da advocacia, ela diz que sua mãe não sofreu nenhuma imposição do diretor e nem maus tratos físicos. Aquela interpretação veio da experiência teatral e de sua mania de perfeição. Fica então a dúvida.
Interessante saber que a atriz nunca mais fez um filme, voltando para o teatro. O ápice de sua carreira é justamente a década de vinte, quando era considerada uma estrela do teatro e ainda fez este magnífico filme. Nos anos posteriores ao filme, endividou-se, mudou para a Suíça, Estados Unidos (onde não pode desembarcar), Brasil (perdeu seu dinheiro em um cassino) e, por fim, Buenos Aires, onde ainda atuou e faleceu, com pouco mais que cinquenta anos.
Não costumo dar notas aos filmes que vejo, mas este é surpreendente e, mesmo sendo mudo e do início do século passado, ainda consegue causar impacto a quem assiste. Merece nota 9,5. Para um 10, creio ser necessário conhecer a versão original, consumida para sempre pelo fogo, assim como Joana D'Arc.
Estou aqui.
ResponderExcluirNão póstei, mas li.
Como sempre.
O Martírio é mesmo impressionante.
Quer dizer que não tem nada do que dizem, de que Dreyer quase enlouqueceu a Falconetti?
Lembro-me que li uma coisa que achei interessante sobre ela, quando no Brasil, mas não consigo me lembrar agora.
Abs
Abs
Pelo menos foi o que disse a filha dela na entrevista que faz parte dos extras do DVD.
ResponderExcluirBjs.