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terça-feira, 18 de agosto de 2009

ÁGUA

Ela se sentia abafada, sem lugar. Andava de um lado para outro, mãos trêmulas segurando um cigarro aceso. Fumava sem parar. A noite era um tédio. Não conseguia dormir. A imensidão daquela casa era angustiante. Não havia um ruído sequer dentro da casa, mesmo porque ela morava sozinha em um amplo casarão de dois pavimentos. Seus empregados estavam dormindo há horas. O relógio da biblioteca marcava 02h23min. A madrugada sempre é fria, independente da época do ano. Ela se envolve com um xale negro. Resolve ligar o rádio e logo a voz de Lobão é ouvida cantando “chove lá fora e aqui... faz tanto frio”. Era pura verdade. A chuva não cessava. Oito dias de água e mais água. O rio que corta a cidade já está no seu limite, pronto para saltar para fora de seu leito. Ela fica mais inquieta. Desliga o rádio, acende novo cigarro. Procura um remédio para dormir, mas não acha. Nunca achava nada. Sempre dependia das pessoas para alguma coisa. Sempre fora mimada. Filha única. Pais falecidos e uma enorme fortuna herdada. Gastava dinheiro por gastar. Não tinha amigos, não gostava de sair. Ficava a maior parte do tempo dentro de casa, fumando e andando pelos diversos cômodos, mas preferia o aconchego da biblioteca. Detestava animais. Tinha seis empregados, mas alguns nunca ela os via, pois sempre dava ordens a um mordomo, o verdadeiro gerente da casa. A aflição é crescente. Ela pega o telefone interno e acorda o mordomo. Quer sair. Pede para o motorista ser acordado e preparar o carro. Escolhe um belo vestido azul que pertencera a sua mãe. Coloca um colar de pérolas, arruma o cabelo e um batom de cor esmaecida nos lábios. Calça uma botinha preta e pega um trenchcoat, por causa da chuva. Para em frente ao espelho e fica se fitando. Vê cada ruga do rosto e esboça um sorriso amarelo. Sinal de que envelhecera e não vira o tempo passar. Acende novo cigarro, se senta em uma poltrona e solta uma longa fumaça para cima. Cruza as pernas. Descruza as pernas. Uma leve dor de cabeça começa a incomodá-la. Vai até o banheiro. Procura uma aspirina. Não acha. Faz leves massagens com a ponta dos dedos na testa. Sente uma melhora. Pega a bolsa com seus documentos. Lá está sua carteira de habilitação. Vinte anos sem dirigir. Esboça novo sorriso. Acha que vai dispensar o motorista. Dirigirá seu próprio carro. Quer se aventurar pelas ruas molhadas da cidade. Volta para a biblioteca onde o mordomo a espera. Tenta convencê-la a não sair, pois a previsão é de mais chuvas fortes, com possibilidades de enchente. Seus olhos brilham. Precisa urgentemente sair, se ver livre do casarão, do mordomo, de suas angústias. Caminha em passos firmes para a garagem. O carro está pronto. O motorista, com cara de sono, já está a postos. Ela o dispensa. O mordomo não acredita no que ouve e no que vê. Ela dá boa noite aos dois, entra no carro e dá a partida. Fica receosa de não saber mais como dirigir, mas espanta o medo, coloca o câmbio na posição certa e sai cantando pneu. Quase bate no portão da saída da garagem. Toma a rua. Dirige sem direção. Não sabe o que vai fazer. A chuva é forte e não se enxerga muito além de um metro. Coloca farol alto. Não há carro algum nas ruas. Imprime uma velocidade cada vez maior no carro. Vê lampejos de luzes de neon de algumas lojas e restaurantes, todos fechados àquela hora. Continua dirigindo sem direção e a chuva vai ficando cada vez mais forte. Raios e trovões cortam o céu carregado de nuvens. Ela ouve um barulho mais forte de água. É o rio, bem a sua frente. Reduz a velocidade. Fica encantada com o volume de água e com a forte correnteza que vem trazendo lama e tudo aquilo que o rio encontrou no caminho até ali. Tem vontade de descer do carro, entrar no rio, ser levada pelas suas águas barrentas. Fica em dúvida. Dirige na avenida que margeia o rio até achar uma ponte. O rio já não respeita mais seu leito. A água já transborda para a avenida, ainda em quantidade tímida. A ponte começa a ser tomada pela água. Acelera o carro, entra na ponte e para. Fica ali, apreciando a chuva e o rio se unirem num só corpo de água. Ela quer se juntar a este corpo aquoso. Quer fazer parte deste novo ser. Ela ouve um grande estrondo. Pensa que é um trovão. Seus pensamentos vão longe. Uma grande onda de água se aproxima. O rio engole a ponte e o carro. Não existe chuva, não existe rio, não existe carro. Seu desejo se realiza. Ela pertence ao novo ser. Um sorriso é eternizado em seu rosto. Sua angústia se fora.

10 comentários:

  1. Sensacional! De certa forma faz com que desejemos esse fim...
    beijos,
    Kitty

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  2. Noel,
    Já estava sentindo falta do escritor de ficção.
    Bj

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  3. A fúria ao escrever deu uma velocidade incrível ao texto. Adorei. Catártico pra umas 5.000 pessoas....(risos)

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  4. Pek,

    E eu estava sentindo sua falta por aqui...

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  5. Hélida,

    A ideia foi justamente dar a velocidade que voc~e constatou.
    Creio que foi catártico para mim (risos).

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  6. Imagina Noel, passo por aqui todo dia, e, como já te disse, mais de uma vez ao dia, pois fico esperando suas postagens.
    Bjs

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  7. Pek,

    Na verdade senti falta de seus comentários...

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  8. Noel, também passo por aqui todo dia (como o Pek). Só não andava fazendo muitos comentários. Mas fiquei com muita vontade de conhecer Pirenópolis depois que vi suas fotos.
    Beijos,
    Kitty

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  9. Kitty,

    Fiquei sabendo que você está de licença. Está tudo bem?
    Se tiver oportunidade, conheça Pirenópolis, pois é linda e aconchegante.

    Bjs.

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