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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

OS FUZIS

Os Fuzis, 1964, 80 minutos.

Filme da primeira fase do Cinema Novo dirigido por Ruy Guerra, tendo como atores Átila Iório (Gaúcho), Maria Gladys (Luísa), Nelson Xavier (Mário), Paulo César Peréio (Pedro), Ivan Cândido (301), Hugo Carvana (José) e Leonidas Bayer (Sargento).

O filme foi rodado em preto e branco, longe de estúdios, na cidade baiana de Milagres, um local bem pobre e devastado pela seca. Tem ares de documentário, especialmente quando os moradores da cidade, que participam de todo o filme, são focados e até mesmo entrevistados. Mas ao mesmo tempo, tem seu lado ficcional, quando os atores profissionais estão em cena.

Interessante como a mentalidade da época, vista nos dias atuais, é bem refletida no filme. Enquanto os homens, adultos e poucas crianças, ficam em um bar em uma aposta com Pedro, um dos soldados, onde armas, munição e cachaça estão no centro da aposta, as mulheres, e muitas crianças, estão em oração na igreja, ou seguindo um beato com um boi que ele acredita ser milagroso. Homens e mulheres com separações distintas de seus "papéis" na sociedade. E ainda tem uma cena que Mário tenta forçar um beijo em Luísa em um beco escuro, mesmo ela não querendo, acabando em um estupro. Machismo e misogenia em cena.

A trama: soldados, enviados pela polícia de Salvador, chegam à cidade para proteger alimentos na venda do vereador (político típico do interior, como um coronel), enquanto a população passa fome. Neste espaço temporal, chegam à cidade um beato com seu boi santo e um caminhoneiro (Gaúcho), com o caminhão carregado de cebolas. A roda do caminhão estraga, fazendo Gaúcho ficar mais dias na cidade. Um dos soldados, brincando de tiro ao alvo em um cabrito, mata um camponês, gerando desconforto entre os demais companheiros soldados e uma indignação da população local, mas sem nenhum levante. Mais para o final do filme, em um breve momento de ação nos moldes de um faroeste, Gaúcho se revolta pela morte de uma criança por fome, pega um fuzil de um soldado e tenta impedir os caminhões carregados de sacos de alimento sair da cidade.

Alguns pontos me fizeram refletir:

1. foi um homem branco (a maioria da população local era negra), do sul do país, que demonstrou alguma atitude para tentar matar a fome dos locais. Foi preciso chegar um homem do Sul para tentar resolver a questão da fome em uma cidade nordestina? Mas a posição de Gaúcho é ambígua desde o início. É machão, quase compra uma menina de 14 anos em uma parada com seu caminhão, tem um passado como soldado, a princípio, não se revolta com a fome que assola Milagres, tendo, inclusive um caminhão carregado de cebolas que está apodrecendo, para depois, ao ver a criança morta pela fome, se revolta.

2. como a religião se aproveita da miséria humana para se afirmar, como o beato do filme com sua promessa de um milagre operado por seu santo boi (apesar da atitude do beato em relação ao boi no final do filme), recebido com ramos de palmeira, como Jesus foi recebido na Galileia, e sendo seguido por uma multidão.

3. os cineastas do Cinema Novo, com suas ideias de esquerda, eram oriundos da classe média e faziam filmes para a classe média consumir, perpetuando a ideia de que os camponeses, especialmente os do Nordeste, não eram capazes de reagir. E ainda fico pensando o quanto tais moradores, sempre com agradecimentos nos créditos dos filmes, foram explorados nas filmagens. Fica a questão: receberam cachê enquanto figurantes, ou mesmo como atores não profissionais?

Apesar destas considerações acima, gostei muito do filme, sendo a primeira vez que o assisti.

Vi, em 01/01/2022, no Now.


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