para Cláudia
Enfim, sua luneta nova tinha
chegado. Tim tirou-a da caixa e ficou um bom tempo contemplando seu novo
brinquedo. Desde que assistira Janela Indiscreta, do diretor Alfred Hitchcock,
ele tinha ficado com a ideia fixa de comprar uma luneta. Mas não podia ser
qualquer luneta, tinha que ser uma poderosa, com ótimo alcance, para observar
os mínimos detalhes. Na época, não tinha dinheiro suficiente para comprar a
luneta que tinha idealizado. Teve que se contentar com uma simples, mas ela lhe
foi muito útil. Todo tempo que tinha era usado para observar seus vizinhos que
viviam nos apartamentos do prédio em frente onde morava. Seu apartamento
ficava no sexto e último andar do Bloco A, o que lhe permitia ver todos os
apartamentos do Bloco C, que ficava à frente. Bastava mudar o ângulo do seu
equipamento e podia observar o cotidiano de pessoas diferentes. Tim não se
interessava por cenas de sexo. Quando elas apareciam na sua luneta, ele mudava
o ângulo e procurava outra cena. O que ele procurava eram cenas do dia a dia,
como uma mulher lavando roupa, um jovem jogando algo no PS3, uma menina vendo
televisão, um homem grisalho sentado em uma poltrona afundado em seus próprios
pensamentos. Ele sabia de cor a hora exata em que muitos almoçavam durante a
semana, dormiam ou se levantavam. Já tinha bisbilhotado todos os apartamentos,
com exceção de um que ficava no quarto andar. As cortinas do quarto e da sala deste apartamento estavam sempre fechadas. Era um desafio para ele conseguir desvendar alguma
coisa daquele específico. Nem mesmo sabia quantos moradores lá viviam. Pois
bem, no mesmo dia da chegada de sua poderosa nova luneta, a janela do tal
apartamento estava desnudada, com a cortina totalmente aberta. Com palpitação
de tanta felicidade, ele montou logo o aparelho, apagou qualquer luz, como era
de costume, e ficou na espreita. Percebeu que havia duas cortinas. A mais perto
da janela era um blecaute, enquanto a outra, era mais fina, de um leve tom
gelo. Parecia que tinha umas letras escritas, mas não as distinguiu naquele
momento. Mirou mais para dentro e viu que era um quarto. Havia uma mala grande
em cima da cama e ao lado da bagagem, havia uma série de nécessaires. Aquilo o
intrigou. Fez questão de contar, chegando ao número doze. Nenhuma igual, nem no
tamanho, nem nas estampas, nem no formato. “O que uma pessoa leva em doze nécessaires?”
pensou alto. Então, uma mulher apareceu. Aparentava uns quarenta anos. Estava
alegre. Pegou a primeira nécessaire e nela colocou alicate de unha, tesoura, um
canivete suíço e uma chave de fenda. Objetos perfuro-cortantes. Na segunda,
estampada de flores vermelhas, colocou absorventes externos e internos. Tim
logo se perguntou o motivo que as mulheres adoram colocar absorventes em nécessaires
estampadas com flores. Veio a terceira, e nela, uma dezena, pelo menos, de
vidros de esmalte, além de removedores, como acetona e um pote redondo da Séphora. A mulher se sentou na cama para arrumar a quarta nécessaire.
Era a vez de produtos de retirar maquiagem, incluindo discos de algodão. A
lente era tão potente que dava até para ler a marca dos produtos, a maioria de
origem francesa. Na próxima, a quinta, a menor de todas, ela colocou agulha, linha,
botão, alfinete, como se montasse um kit de costura em caso de emergência.
Aquilo estava ficando bom. O que viria em seguida? Sexta, de tamanho grande
para produtos de cabelo, como xampu, condicionador, creme para pentear e uma
escova esquisita, no formato de um feijão grande, cor rosa choque. Antes de
colocar a escova na nécessaire, a mulher escovou seus cabelos para, então,
continuar a sua arrumação. Na sétima, ela colocou alguns vidros e potes de
maquiagem. Ainda faltavam cinco e Tim não tinha ideia do que ainda ela
colocaria nas restantes. A mulher deu um tempo nesta parte para ajeitar sua
mala, arrumando algumas roupas e sapatos. Quando voltou, era hora da oitava
nécessaire na qual ela colocou cremes hidratantes para mãos, pés, rosto, além
de um gel para pernas e pés cansados, sinal de que ela pretendia andar muito na
sua viagem. Na nona estavam lenços umedecidos, lenços de papel, lenços
antigermes e quatro vidrinhos de álcool gel. Restavam três. Para Tim não havia
mais nada para colocar nelas. Mas a mulher o contrariou, pegando a décima
destinada para uma batelada de comprimidos. Era remédio que não acabava mais.
Ele conseguiu identificar Dorflex, Neosaldina, Stilnox e Rinosoro. O que viria
na décima primeira? A resposta veio rápido: escova de dente, dentifrício, fio
dental, escova interdental e enxugatório bucal. A mulher pensava em tudo.
Finalmente, ela pegou a décima segunda, deixou-a bem aberta em direção à lente
da luneta de Tim, como se soubesse que estava sendo observada, e saiu do
quarto. Tim ficou na expectativa de seu retorno, o que aconteceu em minutos.
Ela trazia um papel nas mãos. Ajeitou bem o papel, colocando-o na boca da nécessaire
e deu uma gargalhada. Tim arrumou o foco da luneta para tentar ler o que estava
escrito naquele papel branco. Conseguiu enxergar a letra, mas estava difícil
decifrar a frase. A mulher ficou sentada um tempo, olhando para cima, como se
esperasse a reação de Tim. Ele não conseguia ler. Pegou o manual da luneta para
procurar como melhorar o zoom, pois sabia mexer a partir dos aparelhos que ele
já tinha usado até então. A mulher mexeu na cortina, o que fez Tim ficar
desesperado, com receio de ela fechá-la sem ele saber o que estava escrito, o
que seria o conteúdo da décima segunda nécessaire. Mas a cortina não foi
fechada. Ela só queria tomar ar fresco, ou foi o que deixou transparecer.
Enfim, Tim encontrou no manual como ajustar o foco para mais perto. Arrumou a
luneta e mirou o papel. Ficou de queixo caído. A decepção era tão grande que
ficou tonto e encostou na janela, fazendo barulho. A mulher, ao ouvir aquilo,
concluiu que já podia fechar as cortinas, mas antes ela colocou o tal papel
colado no vidro da sua janela, virado para fora. A frase iria ficar visível
para Tim, como uma tortura psicológica. Uma frase simples: “você jamais saberá
o que eu colocarei dentro desta décima segunda nécessaire!” Tim teve um colapso
nervoso.
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